quarta-feira, março 16, 2005

Fuga (Deserto)

Fuga (emaranhado)

(Sometimes you can't make it on your own)



(...) Não, não era quem ela pensava, porque seria ele assim? Porque o tentavam ver assim? Ele não era mais que uma pessoa vulgar, simples, claro que não passava despercebido por onde passava, mas devia-se há sua áurea, há sua maneira de estar, a sua maneira peculiar de ver as coisas, a maior parte das vezes via demais, muito mais do que é apetecível a qualquer ser humano, mas estava a ficar farto de passar a vida a ser acusado injustamente, de fazerem juízos de valor a todo o instante. E isso entristecia-o, fazia-o perder todo a chama, o charme, a sua jovialidade e o seu carisma.
Um dia, um certo dia fugiu, farto de tanto rancor, de tanta desilusão, de tanta decepção à sua volta, partiu em direcção a coisa nenhuma, queria mesmo perder-se, nem que fosse num vazio, num deserto, numa ilha perdida, onde ninguém o sentisse, onde ninguém soubesse dele, onde não magoasse ninguém, onde a desilusão e a frustração o abandonasse, ou abandonasse aqueles que o rodearam algum dia.
Partiu em debanda de forma a que nem os cães lhe sentissem o rasto, fugiu e no pensamento um enorme vazio, era assim que queria chegar ao deserto. Um deserto, um enorme deserto criado com a areia que vomitava, brotava da sua cabeça.
Às portas daquele enorme e recôndito ermo de solidão, assim que meteu o seu pé, ficou em perfeita indigência e penúria de actos, era isso que pretendia, ficar vazio sentir o vazio a solidão, a sofreguidão de não ter, de perda.
O caminho era longo, muito longo, demasiado longo um autêntico calvário, dizem que era quase impossível atravessa-lo sem sair de lá louco ou com uma enorme depressão, mas foi andando, com um trapo atado a cabeça, tronco desnudado, com marcas visíveis do tempo e do sol. Sol que queima, tempo que gasta e lá foi andando, com uns calções esfarrapados, pés desnudados, mas a pisarem firme a areia quente, nada que o fizesse parar a sua busca incessante dos seus vários porquês, fazia lembrar a história, sim fazia, mas também porque havia de contar aqui uma história, a vida tem tantas histórias e que histórias, ás vezes falta coragem para as contar.
Outras vezes nem sequer é coragem é estratégia, para que ninguém sugue o seu ser, é a protecção, colete a prova de estudos e minuciosas apreciações, porque razão abrir portas, se elas se fecham, estas eram certezas no meio de tantas duvidas.
A noite chegava, puxava do seu cantil provido de água, uma água especial, uma água desprovida de sonhos, quando o víamos de cabeça inclinada para trás a beber, a maçã de Adão a andar para baixo e para cima, era perceptível que aquela água era uma miragem, aquela água só existia na sua imaginação, aliás a sua imaginação alimentava-o, magoava-o, amava-o, mas também o matava lentamente, muito lentamente.
Meio caminho percorrido, um duro caminho, descobriu que, se queria continuar a viver, não podia sonhar, os sonhos não pertencem ao mundo dos homens, os homens tem de ser decididos, fortes, com soluções imediatas, duros, não podem sonhar, mas também é verdade que os sonhos são ficção, são fantasia, mas muitas vezes são uma aspiração.
Estava ali, naquela noite estrelada, com os olhos prostrados no horizonte, imóveis, quase sem vida, parados sem reacções ou reacção, mas a sua mente trabalhava a uma velocidade alucinante, processava informação, muita informação, muitos anos de informação, e ali estava, naquele deserto, com quase todo o caminho percorrido, muitos dias de viagens, de longas viagens, a procura de respostas, respostas e mais respostas, uma vida de respostas.
Por vezes a dado momento na vida tem que se parar e repensar, mesmo que a vida nos sorria, temos que nos enquadrar novamente, a realidade é ali, pode estar ali perto, muito perto, mas pode nos fugir rapidamente, o caminho foi percorrido, as respostas clarificaram, e no momento em que saiu do deserto e isto contaram-me.
Acordou, abriu a janela e gritou “ Bom Dia, a quem é uma Flor”.

Apeteceu-me

11 comentários:

Cris disse...

São assim os sonhos...
Por vezes, atravessamo-los como se reais fossem, de uma forma tão intensa q chegam a doer... e chegamos ao fim deles como se tivessemos acabado de atravessar um deserto sem oásis.
Pesadelos?... Não creio! Apenas sonhos mais intensos!

Felizmente que ao acordar ainda conseguimos perceber que a realidade tb tem aromas divinos que nos fazem sorrir tanto!...

Boa-noite, Carlos, bons sonhos!

Anónimo disse...

a travessia de um qualquer deserto é sempre uma coisa lixada... espero que a tua/dele tenha terminado ... a minha, se calhar ainda anda pelo meio da dunas que vão ondulando e desfazendo-se a cada noite...
beijo
maria

Cerejinha disse...

:-) Por vezes ouço um bom dia assim!

(Lindo texto!)

Anónimo disse...

adorei, apeteceu-me ler mais e mais, que sede de leitura.
talvez os sonhos e a relidade sejam complementares e fazem-nos atravessar desertos

Anónimo disse...

Lindissimo Charles...à música, o texto..adorei
fica bem
beijos

D disse...

Excelente a escolha da música, é incrível como a mais pequena coisa que acrescentas ao teu site, faz com que tudo fique ainda mais brilhante como tu . Beijos:)

Anónimo disse...

AINDA DIZEM QUE OS PORTUGUESES LÊEM POUCO. A CRER PELO SÉQUITO A REBOQUE, PELA SEDE DE LEITURA EXPRESSA PELAS COMENTARISTAS, AS ESTATÍSTICAS, E OS ESTUDOS ELABORADOS PELOS ENTENDIDOS ESTÃO TODOS ERRADOS. AFINAL LÊ-SE... E ESCREVE-SE.. MUITO EM PORTUGAL. E HÁ AINDA A IMAGINAÇÃO DAS FRUTINHAS E AFINS.

BlueShell disse...

"ermo de solidão é comigo"...
Já te disse que gosto de te ler?
hein? São belos, airosos, cristalinos, os teus textos. Gostaria de escrever assim. Aceita um beijo, BShell

isa xana disse...

tantas vezes queremos fugir do que nos rodeia... e tentamos fugir em sonhos, em imaginaçoes de horas e horas... mas no final tudo regressa como sempre é... e nós ou continuamos a querer fugir ou os nossos sonhos e imaginaçoes ajudam-nos a querer enfrentar o que nos espera a cada dia...

gostei, como gosto sempre;)

beijinho

Micas disse...

Já sabes que gosto de te ler e que cá venho sempre que possivel´. Últimamente a blogger não me tem deixado comentar...ontem começei no teu post "que (raio) de dia" e em nenhum me foi permitido comentar???
Faço minhas as palavras da Luzesana...
Cuidado com as temperaturas que andam por aí...qualquer dia vira mesmo um deserto...beijos

Kimaya disse...

Estupefacta estou ao aperceber-me de curtas palavras brilharem no meu blog. não brilham de serem conhecidas, brilham porque me abrem um caminho a pedaços de papel virtual como este. saboreei as palavras... estou no deserto agora não a fugir, mas a reflectir...