sexta-feira, abril 01, 2005

Quem sabe ? (odeio o dia das mentiras)

Quem sabe?
(...) Contam os antigos, que há muito, muito tempo havia um velho que durante anos ninguém acreditou nele. Cabelo enorme branco, preso por uma fita de serapilheira. A cara comida pelo tempo, as rugas escurecidas do sol, os olhos encaixavam-se numas covas de quem já tinha visto e passado por muito, os lábios ressequidos, quase em crosta, umas orelhas curvas, bem pronunciadas e juntas ao crânio. As suas veias soltavam-se pelo pescoço, tinha um corpo hirto para a idade magro mas seco, era um corpo com fibra, vestia um manto feito de trapos que outrora foram roupa, nos pés uns chinelos feitos de couro. As suas mãos, eram umas mãos cansadas, mas de uma beleza impar, uns dedos compridos finos, que contrastavam com a sua indumentária, mas eram as suas unhas, as suas unhas que lhe davam um ar digno, durante muitos anos pensei porquê, nunca consegui perceber porquê, mas aquilo que os antigos me contavam, deixava-me a pensar porque é que eram a unhas que o destinguiam.
Os mais novos, ouviam as suas histórias, para depois o gozarem, os mais velhos ignoravam-no, simplesmente esqueceram-no e abandonaram-no, mas ele nunca se sentiu sozinho, a sua missão era essa, dizer, contar, partilhar o seu conhecimento.
Tinha 16 anos quando partiu pela primeira e ultima vez da terra que o viu nascer, era uma terra não muito grande, ali para os lados de Barcelona, saiu sem direcção, sem rumo definido, saiu simplesmente. Ninguém se lembra que ele tenha olhado para trás, mas a grande verdade é que ninguém se lembra dele sequer, porque haveriam de se lembrar? ... Correu, meio mundo, passeou-se por outro meio, viu aquilo que ninguém acredita, muito menos imagina, nem sonham por ventura com tais locais, viu cabos que viravam oceanos, viu montanhas que fugiam pelo céu, viu campos brancos que se espalhavam pelo horizonte, mares que se fundiam com o Céu. Viu, viveu e foi feliz.
O sitio onde passou mais tempo foi pela ilha do Bornéu, onde a selva era densa, os animais mandavam, onde reinava ainda o bom senso e ordem natural da existência da vida, a Natureza Era a natureza que mandava ali, os humanos que ali viviam respeitavam-na e serviam-se do que ela lhes dava, usufruíam das suas dádivas e agradeciam sem as machucar.
Um dia rio acima, encontrou uma tribo, o seu ar desconcertante na altura, foi o que o fez sobreviver, ainda com 20 e poucos anos, de barba por desfazer, fez com que a tribo Akri, uma das mais perigosas tribos de caçadores de cabeças da Ásia não o fizesse em bibleot. Um dia mais tarde teve a certeza, que foi aquela barba que fez com que a sua cabeça não estivesse em exibição naquela aldeia. O chefe da tribo teve-o na mira da sua zarabatana, daquele cano, com cerca de 2 metros que tem um dardo feito de osso afiado, e com pequenas penas de papagaio, que lhe dão uma cor extraordinária, mas o veneno que é envolto no bico do dardo é mortal, eficazmente mortal, é uma mistura, que só a tribo Akri conhece, primeiro paralisa e depois mata, eles acreditam que toda a gente deve conhecer e ver a sua morte.
No fim de avanços e recuos, aqueles homens de estatura pequena, não muito negros, olhos rasgados, uma espécie de trança a volta da cabeça, com uns estranhos calções ou slips, feitos de pele de um qualquer animal, mal curtida, no fim de avanços e recuos, o chefe decidiu, leva-lo para a sua aldeia, uma pequena aldeia feita com casas de pé alto, por baixo viviam os animais, os pequenos animais domésticos, se é que isso se podia chamar, e por cima viviam os homens e mulheres da tribo.
Naquela noite conta-se, que foi dada uma festa em honra daquele homem que chegou de lado nenhum. A ementa era miolos de macaco, um óptimo pitéu na zona, depois de mão em mão passava uma malga de uma bebida esquisita, cada vez que ele bebia, todos se riam, foi beber até cair para o lado, lembra-se só de acordar e vomitar tudo, era normal, tinha feito a iniciação à tribo, à sua tribo. Quando acordou, pouco ou nada restava do seu corpo, estava coberto de chagas, foi levado para longe, onde durante 5 dias, ficou fechado num buraco, só com a cabeça de fora onde uma jovem, uma bonita jovem, lhe dava água, foram alucinações diárias, até ao 5º dia, quando o tiraram daquele buraco, onde as formigas lhe chuparam o sangue.
O corpo pouco ou nada tinha vazio, tinha sido tatuado em todo o seu corpo sobrava-lhe as mãos e a cabeça, as formigas curaram-lhe as chagas, limparam-lhes as feridas. Ali ele percebeu que a natureza dava tudo o que era preciso, por ali casou, por ali ficou, até um dia...
Na sua terra não passava de um velho doido, de um velho maluco, de mais um velho que alucinava com histórias, mais um mentiroso, mas pelo mundo era considerado o maior antropólogo que alguma vez existiu.


Apeteceu-me

"Existir é viver, desistir é morrer" Charles de la Folie

6 comentários:

Anónimo disse...

tambem detesto o dia das mentiras, não gosto de palhaçadas.(isto antes de ler o texto todo)
tá um espectaculo, acho que há situações que é preciso viver para acreditar.

Anónimo disse...

Sabes que o "Dia das mentiras" vem da introdução na Europa do calendário Gregoriano?
Felicito-te. A tua imaginação está ao rubro.
Parabéns cunhadão

Cris disse...

O teu poder de criação é algo q me fascina!
Este texto é, pelo q dizes, produto dessa tua criatividade, mas podia mt bem ser uma verdade.

Gosto mt de te ler (ainda q diga isto, hj, no dia das mentiras, asseguro-te q é a mais pura das verdades!)

beijinho

Anónimo disse...

Eu tb gostei...mt bom texto Charles
beijo grande

Å®t Øf £övë disse...

Muito bonita e profunda esta história.Dá para tirar dela alguns ensinamentos.
Gostaria de te perguntar se não te importas que te link lá no meu cantinho.
Bom fds.
Abraço.

Anónimo disse...

*Viu, viveu e foi feliz.*
Quem dera a todos nós, vermos, vivermos e sermos felizes...

Este texto não é mentira... é teu...és tu...saiu de dentro de uma grande e bela verdade...

Beso*