(…) Há 40 anos que aquela porta não se abria. Era um momento de algum nervosismo. Naquele instante bastava esticar a mão, meter a chave na ranhura… e depois com o pulso, rodar aquela maçaneta de madrepérola para a direita… e empurra-la.
Lá dentro, ninguém sabe ao certo o que lá poderá estar, além dos cheiros que se acumularam ao longo de tantos anos, e do pó, e dos bichos, e das lembranças, e de sei lá mais o quê.
(…) Tão nova, tão bonita, tão… mantinha-se naquele quarto quieta em silêncio, com um olhar terno fixo numa qualquer esquina, de uma rua não muito movimentada, mesmo ali. Lá estava como todos os dias de cotovelos fixos no parapeito, mão a abraçar e apertar a face até ruborizar as maçãs do rosto. Os pés entrelaçados um no outro batiam ritmos ao som do silêncio. Os cheiros sóbrios a alfazema da sua roupa cruzavam-se com as cores garridas dos seus pensamentos.
(…) Ao mesmo tempo que olhava para aquela maçaneta de madrepérola, pensava em milhentas coisas. No fundo do seu bolso, procurava a chave que abria aquela porta. Com o sobrolho franzido como que faz alguma ginástica mental para conduzir os seu dedos entre lenços engelhados de tanto uso, papeis de rebuçados, algumas moedas de pouco valor e uma medalha que tinha achado a porta da mercearia quando foi comprar alguma bolachas a peso.
(…) O seu nome Liberdade, contrastava com a sua clausura naquele quarto. Aquele olhar era a porta para os seus males. Era ai que se libertava com os seus pensamentos, das vontades impostas, da sua condição feminina de quem estava prometida a ninguém. Realmente essa era a verdade nos seus pensamentos não cabia lá ninguém obrigado. Tudo o que coabitava com ela, vivia em harmonia com o seu próprio mundo que cá fora tinha o nome de utopia.
(…) O metal da chave roçou-lhe pelos dedos, puxou-a, atrás com a imensidão de coisas que se iam acumulando ao longo de dias, veio o próprio interior do bolso de uma sarja muito fininha. Tentou alinhar a chave na sua mão para poder abrir aquela porta encerrada nos tempos e que lá dentro teria no mínimo uma mão cheia de nada.
Nervoso, enterrou a chave na fechadura, como quem crava um espada pelo corpo e rompe a carne. o barulho em nada semelhante provocou um arrepio muito parecido com tremor de terra.
(…) Naquele dia, quando no único momento em que desviou o seu olhar da rua. Fixou durante algum tempo a porta do seu quarto que estava fechada, mas não trancada. Percebeu que as marcas da madeira afinal não eram mais que marcas de tempo, tempo passado na floresta ao sabor dos ventos, do sol da chuva, eram as suas marcas que tinham parado no momento em que foi ali posta (a porta).
(…) Com a mão direita rodou a chave para a direita, duas voltas depois, rodou a maçaneta de madrepérola, para a direita também mas com a mão esquerda.
Respirou fundo uma vez, respirou fundo uma segunda vez, e uma terceira.
Na altura em que encostou o joelho a porta para poder auxiliar a abrir, teve um calafrio e uma sensação de dejá vu. Respirou então fundo pela última vez.
Apeteceu-me
"A Vida é a pior das doenças, leva-nos sempre a Morte". Charles de la Folie