terça-feira, março 20, 2007

A Porta.






(…) Há 40 anos que aquela porta não se abria. Era um momento de algum nervosismo. Naquele instante bastava esticar a mão, meter a chave na ranhura… e depois com o pulso, rodar aquela maçaneta de madrepérola para a direita… e empurra-la.
Lá dentro, ninguém sabe ao certo o que lá poderá estar, além dos cheiros que se acumularam ao longo de tantos anos, e do pó, e dos bichos, e das lembranças, e de sei lá mais o quê.



(…) Tão nova, tão bonita, tão… mantinha-se naquele quarto quieta em silêncio, com um olhar terno fixo numa qualquer esquina, de uma rua não muito movimentada, mesmo ali. Lá estava como todos os dias de cotovelos fixos no parapeito, mão a abraçar e apertar a face até ruborizar as maçãs do rosto. Os pés entrelaçados um no outro batiam ritmos ao som do silêncio. Os cheiros sóbrios a alfazema da sua roupa cruzavam-se com as cores garridas dos seus pensamentos.





(…) Ao mesmo tempo que olhava para aquela maçaneta de madrepérola, pensava em milhentas coisas. No fundo do seu bolso, procurava a chave que abria aquela porta. Com o sobrolho franzido como que faz alguma ginástica mental para conduzir os seu dedos entre lenços engelhados de tanto uso, papeis de rebuçados, algumas moedas de pouco valor e uma medalha que tinha achado a porta da mercearia quando foi comprar alguma bolachas a peso.


(…) O seu nome Liberdade, contrastava com a sua clausura naquele quarto. Aquele olhar era a porta para os seus males. Era ai que se libertava com os seus pensamentos, das vontades impostas, da sua condição feminina de quem estava prometida a ninguém. Realmente essa era a verdade nos seus pensamentos não cabia lá ninguém obrigado. Tudo o que coabitava com ela, vivia em harmonia com o seu próprio mundo que cá fora tinha o nome de utopia.


(…) O metal da chave roçou-lhe pelos dedos, puxou-a, atrás com a imensidão de coisas que se iam acumulando ao longo de dias, veio o próprio interior do bolso de uma sarja muito fininha. Tentou alinhar a chave na sua mão para poder abrir aquela porta encerrada nos tempos e que lá dentro teria no mínimo uma mão cheia de nada.
Nervoso, enterrou a chave na fechadura, como quem crava um espada pelo corpo e rompe a carne. o barulho em nada semelhante provocou um arrepio muito parecido com tremor de terra.




(…) Naquele dia, quando no único momento em que desviou o seu olhar da rua. Fixou durante algum tempo a porta do seu quarto que estava fechada, mas não trancada. Percebeu que as marcas da madeira afinal não eram mais que marcas de tempo, tempo passado na floresta ao sabor dos ventos, do sol da chuva, eram as suas marcas que tinham parado no momento em que foi ali posta (a porta).

(…) Com a mão direita rodou a chave para a direita, duas voltas depois, rodou a maçaneta de madrepérola, para a direita também mas com a mão esquerda.
Respirou fundo uma vez, respirou fundo uma segunda vez, e uma terceira.
Na altura em que encostou o joelho a porta para poder auxiliar a abrir, teve um calafrio e uma sensação de dejá vu. Respirou então fundo pela última vez.

Apeteceu-me




"A Vida é a pior das doenças, leva-nos sempre a Morte". Charles de la Folie

terça-feira, março 13, 2007

Panóplia

(…) Não me lembro do dia em que senti toda a verdade do meu corpo.
Parecia querer rebentar. As dores abundavam, percorriam-me de cima abaixo, como se uma machadada bem media tivesse sido desferida com a violência de 100 ódios. Fragmentei o meu corpo, mas sabia que tinha de conviver com ele até ao fim dos meus dias.


(…) A Razão estava do lado dela, estava! Toda a gente sabia disso, mas nunca ninguém ousou perguntar, qual a razão! Era difícil entender a forma diferenciada da razão, mas ela subsistia sobranceiramente sobre todas aquelas cabeças que emanavam conhecimentos tão diferente como a própria razão que teimava em deitar-se numa cama que não era a dela.


(…) Aquela dança era quase tribal, não era de tribo, nem de “ porra ” alguma. Era simplesmente uma dança simples, sentida, que se resumia a isso mesmo: - uma dança
Aquele corpo sucumbia aos sons que saíam pela sua alma, e lhe faziam estremecer os seus próprios prazeres. Recebia por cada passo uma nova salva de acordes que se confundiam com gemidos de…


(…) Já se sabia mesmo antes de acontecer, era quase inevitável que tal não sucedesse!
O ar estava carregado de nuvens negativas, as suas descargas recaíam sobre coisa alguma, mas estavam lá prontas a ser disparadas contra nada. Era a história do vazio, do bacoco e daquilo que realmente não interessa. Por outras palavras era a história da vida dos outros.



(…) A música que saia, era inconfundível. Eram melodias a roçar o celestial, se é que isso existe. Havia a musica da Celeste, que não passavam de pequenas cantorias, inventadas no prazer da brincadeira com os seus amigos invisíveis e indivisíveis. Cantorias cantadas em tom desafinado, que soavam a pequenos deleites de ternura.

(…) Estava ali sentado, sobre si mesmo. Cotovelos vincados no ventre, mãos bem abertas sobre o rosto. As nádegas resfriavam naquela pedra fria, que fazia as tripas andar num virote. Encolhido, pensava nos dias que ainda restavam, para o fim da sua ainda curta vida. Pensava em tudo o que não fez e que não sabia se algum dia ia conseguir fazer… mas pensava.



(…) Ontem descobri que me faltava viver o dia de amanhã. Descobri que o dia que ontem passou, já não existe, que os erros perduram mesmo que se corrijam. A nossa imagem desgasta-se como o pensamento, desvanece como as tempestades, mas que é forte como … Senti isso ontem quando preparava aquele enorme salto para descobrir se sou eterno.


APETECEU-ME


"Ontem revi-me no meu pensamento, senti-me falso no meu olhar". Charles de la Folie

terça-feira, março 06, 2007

Magia da Lua







(…) Sentada, naquela pedra fria perto de tudo e de nada pensava em ti!
Estava uma noite, bonita, de temperatura amena, com um pequeno sopro de vento, que mal dava para despentear os já muito desalinhados cabelos, de tanto passar com as mãos. Não sei se eram afectos em causa própria, mas gostava de passar as mãos pelos meus longos cabelos e senti-los a escaparem-se entre os dedos, agarra-los, puxa-los, e com a ponta, fazer pequenas massagens no couro cabeludo.
- Parecia magia, lá longe na imensidão do aquém, na infinidade do nada. Acendia-se uma luz, que não era dela, mas que também não era importante, não ela, mas a luz. Ela era mais que importante, era essencial ás pequenas coisas doces que a vida nos dá. Pensado bem era essencial a tudo o que a vida nos concede, – quantas vezes dei por mim a carpir mágoas com ela!? Quantas vezes me senti apaixonada por ela?! Quantas vezes senti a sua magia entranhar-se no meu corpo em forma de arrepio!?
















Estava a ficar com o corpo dormente do frio da pedra a entranhar-se por mim, era normal. Não era normal era estar com a mente empedernida de tanta beleza. Os pulmões respiravam a uma intensidade quase ciclónica. Os meus peitos quase rebentavam os botões da minha camisa branca de popelina, tão cintada que me deixava a barriga lisa e definida, atleticamente precisa.
Os meus lábios, encarnados de prazer, húmidos de deleite, os olhos vidrados de tanto deslumbramento. Mas sentia a minha linguagem corporal a balbuciar palavras sem sentido aparente.











A minha frente, mas bem lá em cima “Ela” dançava, uma dança estranha. Muitas vezes acompanhada por véus estranhos, umas vezes opacos e escuros como brancos e transparentes.
Gostava de a sentir, sentia a dentro de mim, sentia como as marés, como fluxo e o refluxo da imensurabilidade dos mares que se curvam no horizonte perante ela.
Naquela altura estiquei os braços bem para cima, juntei as mãos, entrelacei os dedos, voltei as palmas das mãos para cima, e espreguicei-me como se a estivesse a empurrar, respirei fundo:
- Fiz mais uma vez aquele movimento para sentir a camisa a passar pelos extremos dos meus seios. Senti um enorme arrepio a entrar-me pelas entranhas. Percorreu-me pelo corpo um ligeiro suor, que se agarrou ao corpo e libertou aquele cheiro de amor e paixão. Foi ai que senti mais uma vez a magia da Lua.








Apeteceu-me








" A Vontade de dizer, perde-se na alegria de olhar". Charles de la Folie