quarta-feira, dezembro 30, 2009

"Aqui há pena de Morte"


(...) Um grito abafado de desespero surgia de uma densa e angustiante escuridão. Tinha um sabor acidulado a solidão. Um choro seco e abnegado levantava-se do pavimento, em direcção a um enorme vazio. Os sons eram inteligíveis, o cheiro nauseabundo e a esperança nula. Martelavam-me, naquele instante, sons inconstantes de uma música mutante que funcionava como um parasita que me comia a razão – lenta e ferozmente. Tinha as mãos embrulhadas em luvas improvisadas, feitas de peúgas e de trapos encontrados no lixo. Escondido numa sombra gélida e impessoal, via as luzes de um mundo cruel. Acendiam e apagavam, mudavam de forma, reformulavam cenários vindos da ganância do «homem». Apelavam, numa estética geométrica, à ruptura do – ser solidário. Nas minhas costas sentia o frio húmido das noites. Ultrapassava os limites da minha roupa, entranhando-se abruptamente nos meus ossos. Já não sentia a dor, nem a dignidade de estar vivo – sobrevivia à minha própria vontade de terminar com aquele sufoco, cada vez mais pronunciado. Vários cartões resgatados ao lixo serviam para me cobrir do olhar da Lua. Tinha vergonha de ser visto por olhos mais atentos. Percorria-me um calor húmido pelo baixo-ventre, chegava-me até ao meio das pernas, aquecia-me com a minha própria urina. Ficava quieto – muito – na esperança de acordar daquele pesadelo. Adormecia num sono vigilante, sempre com os olhos prostrados na incerteza.(...)

In "Aqui há pena de Morte - Diário de um sem abrigo" - Brevemente disponível.

Apeteceu-me
"Nâo há tempo nem lugar para nos perdermos com as grandes coisas... essas fazem parte da mesquinhez humana" - Charles de la Folie

quarta-feira, dezembro 09, 2009

Livro (de ninguém)

(…) Desfolhava o livro, como quem faz amor. Movimentos simples, mas profundos. O olhar concentrado juntava as palavras que caminhavam à velocidade daquele olhar compenetrado. No espaço entre as folhas -amareladas pelo tempo – e o observar, juntavam-se ideias e utopias. Os dedos que marcavam o passo da sua leitura, tremiam na ansiedade de chegar ao fim. O rosto consumido pela concentração, abria rasgos de desassossego. Lá longe nada se erguia, estava vazio, o mundo concentrava-se naquele pequeno espaço de ninguém.

(…) Passavam já alguns minutos depois de nada. O tempo estava parado. Os olhos movimentavam-se assimetricamente. Apenas um respirar balançava entre dois mundos. O dela, rasgado por imagens e o dele, escrito no próprio patíbulo. Os universos eclodiam numa distância proporcional e indizível. Até hoje ninguém descobriu o sentido exacto da sua predicação. Ela apenas voou sobre as palavras que acabara de achar dentro de si. Um sémen de vocábulos.

(…) O escuro que a rodeava, esbatia-se na luz do seu rubor afogueado. A posição incómoda, fazia-a rebolar na cama. O livro colado nas mãos – delicadas e aguçadas –, mantinha-se aberto. Mais uma vez o semblante fechava-se, para logo em seguida despertar um sorriso, apenas um. Molhava o dedo, nos lábios húmidos e desfolhava mais uma página. Um segundo apenas, para ordenar as ideias e logo retomar a ordem das palavras. A noite lá fora esperava por ela.



(…) Fechou o livro sobre o seu dedo, uma marca de si, colocada nele. Apenas isso. Engoliu em seco enquanto colocou o manuscrito no seu peito, a perscrutar o som abafado de um coração discreto. A cabeça colocada na almofada, olhos fechados, respiração controlada, imaginava-se dentro dele. Seguiu a história com os seus olhos escondidos pelas pálpebras que se mantinham fechadas. No dia seguinte, alguém pegou no mesmo livro e o fechou num armário. Fala-se que foi suicídio, talvez…

“Nem sempre se desfruta o tempo, mas o tempo passa por nós e desfruta-nos" Charles de la Folie

quinta-feira, novembro 12, 2009

A existência de nada

(…) Tinha acabado de se deitar sobre o seu silêncio. Irracionalmente aqueceu-se em si, numa solidão acompanhada, mas consentida. A sua imagem projectava-se, no branco da parede, riscado pela luz que ultrapassava os estores entreabertos. Imóvel, apenas o pensamento circulava numa espiral indecisa e vertiginosa. O som do ponteiro dos segundos, crescia, num irritante compasso do tempo e da vida, cada batida era um momento que já não voltava atrás.


(…) O confronto corporal, decidido pela cobardia de que nada se passa, ocupava o raciocínio que se ia toldando por si só. O medo de envelhecer, não ocupava mais que o próprio dia, a noite ultrapassava em constantes transgressões. O sonho permanecia naquele sulco mais dividido da noite. Um respirar leve, um movimento melífluo, faziam com que o reflexo de si criasse uma espécie de siamesa. Um alter-ego que nunca se viria a revelar.


(…) O leve beijo que irrompe sem apelo nem agravo. O morder dos lábios que faz sentir o sangue quente do vazio. Rebuscam memórias que nunca irá recordar. A sombra permanece, esconde o movimento perverso das partículas que se suspendem no ar reciclado pelos seus pulmões. Os segundos ainda lá estão imperturbáveis, mas já não se ouvem. As mãos movimentam-se, o corpo ajeita-se, descola-se do lençol que nunca irá ser seu confidente.


(…) Há um regresso que não se sente. Um espírito que não se encontra. Um desejo que não se concede. Apenas o sombreado do sonho vagueia entre o murmúrio da sua mutabilidade. O revérbero apela para que se deixe a passividade do tempo para trás. Os olhos vibram. Há um movimento perdido dentro das pálpebras que persistem fechadas. Um primeiro contacto com nada provoca um suspiro, um segundo, um pensamento. O perímetro do dia foi aberto. A vida vagueia por ali e a morte também.



Apeteceu-me


“Percorrer o medo com os dedos não é sinal de cobardia, apenas disso mesmo”. Charles de la Folie

terça-feira, outubro 27, 2009

(…) Naquele corredor, apenas naquele, onde o grito saía abafado, ao descoberto de coisa nenhuma. Sentiu o desejo de não regressar mais. Estava aturdido, não recordava o porquê. Havia um certo sabor a insónia, o corpo esgaçado disso mesmo, das voltas sem fim no chão daquele enorme corredor. A luz quebrava-se contra o silêncio do seu olhar, todo ele inexpressivo. As paredes secas de cor, o tecto isento de reflexo, o dia lá fora desunido de tudo. Procurava apoiar-se no balanço do seu crescente alheamento.

(…) O chão, escorregadio juntava-se à escuridão daquele espaço infinito. Talvez terminasse naquele – tão seu – abismo. Ouvia-se contar que houve tempos em que brincavas na fímbria dele, como se não tivesses limites, hoje as lágrimas, apesar de não passarem do umbral dos seus olhos, ali permanecem na ilusão de coisa alguma. Falas do precipício como se fosse tão teu que não te consigas afastar dele e hoje, onde vives?


(…) Tacteava as paredes, unidas, sem portas nem janelas, apenas a fresta do teu corpo. Uma brisa – causava um arrepio de abolição –, provocada pela passagem da tua existência, toda ela em si provocante. Mas ali estavas presa, suportavas uma dor inquietante. O desejo, o querer, ofuscado pela vingança. A saudade e a esperança, escurecidas pela cobardia. Nem mesmo o ajeitar da ponta do cabelo que se soltava numa estranha musicalidade, te libertava da escuridão.

(…) Mais um passo dado em direcção ao fim que nunca mais acaba. É nesse pensamento que deixas cair o teu mais tímido sorriso. O mesmo que escondes debaixo dos lençóis, resguardado dos segredos que são só teus. Passo a passo procuras a direcção exacta do teu medo. Fechas os olhos, e não notas a diferença entre o que vias e o que acabas de ver. Da mesma forma que não acreditas que o fim apareça sempre do mesmo lado. Não há lado, apenas a lembrança que os lados da tua Alma te doem.

Apeteceu-me

"Basta uma nova direcção, para acontecer um desvio" Charles de la Folie

quinta-feira, outubro 08, 2009

“Aqui há pena de Morte – Diário de um sem abrigo”

“- Morada? – o coração começou a bombear o sangue violentamente, provocando-me uma ansiedade. – Não tenho morada minha senhora! Aqui, neste local onde me encontro, sentado e com o coração a bater, sou um número que uns querem subtrair e outros somar.”
Eis o diário comovente de um sem-abrigo, um grito de desespero com um sabor acidulado a solidão.
Cap, Russo, Cenoura, Joe, Crava… deambulam pelas ruas de Lisboa quais soldados numa luta inglória. Conhecem de bem perto as agruras da vida, mas cedo aprenderam a amortecer as pancadas diárias e vivem numa enorme solidariedade.
Cap tem a seu cargo este exército invisível e uma missão, ajudar os outros sem-abrigo a aguentarem-se nas ruas e a protegerem-se do torpor da pena alheia. Perdido entre o presente da sua vida de indigente e o passado que não consegue lembrar, retrata-nos, numa visão fina e arguta, uma Lisboa pouco atenta à indigência.
Cap possui uma cultura ímpar e uma alma de poeta, é um sonhador. Nos seus sonhos fantasistas o beijo come nuvens, os campos abraçam, os mimos desprendem-se das árvores.
Quando conhece Rita perde-se na imaginação do amor. Sentir os lábios de Rita nas suas bochechas cadavéricas transporta-o para uma outra dimensão. Mas terá um sem-abrigo direito ao amor? Ei-lo confrontado com a vontade de se apaixonar e a vontade de prosseguir uma missão de sobrevivência.
“Há quem não acredite em nós, quem nos considere uns dissimulados, mas quando tombamos aqui…é demasiado difícil de nos voltarmos a levantar.” E pode acontecer a qualquer um de nós!
Cap, porém, pondera erguer-se e partir…

Para breve numa livraria perto de si...


"Temos de continuar o percurso, mesmo que seja difícil levantar as pedras que nos atiram." Charles de la Folie

quarta-feira, setembro 23, 2009

Alternativa

(…) Está abafado, lembram-me os teus braços nas noites de inverno. Não me perguntes porquê, não me lembro deles, mas recordo-me das mangas daqueles enormes camisolões que usavas. Mas a tua face, o teu rosto, os teus olhos, não os sinto. Sinto ainda nos meus dedos os contornos do teu beijo, só isso, não sei a verdade, só sei, que aqui estou, neste calor sem cheiro, nesta energia suspensa e quieta, como se observasse coisa alguma, nesta escuridão que me procura e abraça.

(...) Reinvento aquele meu querer, procuro nas fraquezas, mais fraquezas, preciso delas para alimentar o meu medo e assim destruí-lo. Aguento aquele desejo, esse mesmo, sei que pensas nele. São vezes demais que me procuras naquele vazio onde nada existe. Penduro-me nessa promessa e balanço-me até que as mãos me deixem. É ali que quero estar pendurado em ti, nesse pensamento alternativo que me constrói.

(...) Apenas sou uma ilusão, acredito que ninguém me veja, que ninguém acredite na sua própria existência, são dias, nem isso, momentos, instantes, aqueles pequenos segundos que nos cortam e despedaçam. Volta ao principio e acredito. Ofereço-me ao destino, na esperança de ser agredido mais uma vez, recuso-me a olhar em frente, não consigo, nem ele me deixa.



(...) Atiro-me para dentro daquela pequena caixa e deixo que ela se feche e fico a saber que tudo depende daquele pequeno principio: em que tudo pode ser alternativa ao nosso Ser, basta para isso não nos deixarmos iludir pelo destino, nem pela vontade que ele tem em nos sugar, humilhar e violar a nossa persistência. Penso, basta isso, penso e desvinculo-me de tudo o que obrigam a acreditar e deixo-me ficar.

Apeteceu-me

"Só não há alternativa à nossa Sombra" Charles de la Folie

segunda-feira, agosto 03, 2009

Perdido na quimera (da realidade)

(…) As lágrimas assumiam a realidade do sonho, foi um despertar «estranho», numa manhã perdida no meio do calor do Verão. O suor agarrava-se aos lençóis de uma cama gasta de tantas noites perdidas em insónias pérfidas e altruístas. Magoa não conseguir vencer o desespero de «coisa» alguma, como se os «nadas» decidissem a vida que nos assiste. Mais uma vez vejo-a acordar sufocada pela profundeza do seu rosto, como naquela manhã que acordei perdido no choro da minha ilusão.

(…) No crepúsculo da irrealidade, a intensidade dos primeiros raios de Sol passam ao lado da profundidade do meu sono. Não acordo daquele silêncio que me enche a vida que se enrola comigo no cetim da cama. Bebo a noite em tragos e espero embriagado que ela passe, para esquecer todos os recantos da escuridão em que ela – noite – assenta. Os dentes cerrados rangem, as mãos unidas parecem rezar, os joelhos juntos ao abdómen esperam pelo «renascimento».



(…) Lá fora há o escuro da noite, a lua que foge e que se esconde entre as nuvens de Verão. Há ainda a Vida, toda ela. Os corpos que se decompõem em melopeias que atenuam o cansativo dia-a-dia. Fecha-se a janela por onde passa a brisa que acaricia o corpo enrolado num sonho permanente mas sem memória. Permanece o suor de um corpo que respira a sua própria vontade e que renasce. Vence o medo do pequeno pesadelo que lhe contrai o corpo.

(…) O peso de toda uma vida faz retomar a noite, afundo-me no colchão, com ele levo o pesadelo de não conseguir recordar o momento em que as lágrimas começaram a libertar-se. Nem de quem eram, nem de quem são. O corpo contrai-se num despertar violento. O semblante carrega a noite, numa intercessão fria. Olhos abertos, fixos em nada. A violência da figuração prende-se na quietude do movimento. Só que isso nunca acontece.
Apeteceu-me
“Serei eu um sonhador neste mundo de pesadelo!” Charles de la Folie

sexta-feira, julho 24, 2009

O Perfeito silêncio

(…) Já nada o fazia prever, nem mesmo a acuidade do silêncio que se fazia sentir. Deixou soltar o corpo, numa expressão de prazer. Dançava ao som da exultação de uma vontade incontrolável. Não havia música, só o cheiro do dia, a luz do sol e o momento suspenso no ar. Não era importante, nada era importante e ao mesmo tempo as dúvidas desvaneciam-se. Os olhos fechavam-se e o sabor das partículas suspensas corrompia o sonho, alimentando a realidade.

(…) As mãos «pregadas» uma na outra, sustentadas pelo ritmo da vontade e pelo mutismo da água a percorrer-lhe o corpo. A brisa que sobressaltava a cortina, refrescava a realidade naquele impasse entre o tudo e o nada. As palavras – ali – só serviam para alarmar o sossego que se vivia, numa Alma gasta de tanto sufoco. Nada era ao acaso, assim como o decorrer da vida que se esvai a cada passo que se dá rumo a outra jornada.



(…) A porta bateu, desceu as escadas, os pés descalços sentiam o frio do mármore, provocando um arrepio na espinha. Havia um rasto do perfume que ele tinha deixado naquela manhã. Apesar de ter partido ela sentia a sua presença. Deixou-se ficar na fímbria do instante e sossegou a mente, respirou-o como nunca o tinha feito. O Corpo abriu-se, soltou um novo corpo – em chamas – que se reergueu num deleite inatingível.

(…) Dos seus olhos soltava-se a sua própria imagem, cheia de dúvidas e desesperos. Havia um sonho consumido pelos beijos que a unia naquele abraço terno a si. No silêncio somente ela existia, o seu desejo pertencia-lhe, assim como a sua vontade de viver. A sombra descolava-se da Alma, escondendo a insegurança do dia-a-dia. Os dedos percorriam a esperança desprotegida de si, no seu mais perfeito silêncio.

Apeteceu-me

"O silêncio é nosso, por mais que nos gritem" Charles de la Folie

quinta-feira, julho 16, 2009

Espelho (de nós)

(…) Sentia-se única, como a solidão, como o céu e como o desejo de ser horizonte. Ao certo revelava-se na sua ingenuidade, como se a noite nunca tivesse abalroado o dia e o dia nunca tivesse despertado perante o breu. O coração apertava nos silêncios e as borboletas esvoaçavam naquele espaço recôndito, escondido perto da Alma. Um respirar fundo que albergava nela todo o calor natural de um Verão antecipado. Uma cidade, o empíreo e o fervilhar de todos aqueles seres que a tornam o centro de tudo – única – como qualquer outro ser, daquele tumultuoso bem-estar.

(…) Parou no meio do nada. Pensava se a vida que vivia lhe pertencia. Porque não ao destino em que não acreditava! Era uma dúvida que lhe havia de persistir durante a sua existência, fosse ela curta ou longa. Lá ao fundo pairava a imagem perdida do nada, um principio de tudo. Talvez fosse isso o que procurava, a sua própria identidade. Mais longe, apartada do real ou tão-somente deslumbrada com a distancia, um pequeno sorriso, apenas isso.



(…) Rasgava o silêncio da água ao sabor do vento. Refrescava a paixão perpétua de se esconder para sempre ali. Nem por isso perdeu o sossego do momento, arrastou o pensamento com ela, naquela jornada indelével. O corpo dançava ao som de pequenas melodias criadas pelo seu espírito. O ritmo o mesmo de sempre, guardado no segredo da sua solidão acompanhada. À sua volta, somente o eco das suas barreiras.

(…) Esfregava os olhos, quando se apercebeu da realidade que a acompanhava. Bela a forma como a luz do dia lhe recaía, recortando o seu corpo numa silhueta perfeita. Cheirava ao fresco das pequenas imagens do dia. O sorriso nascia pela primeira vez enquanto acordada. O respirar entranhava-se nela, assim como o sangue quente que lhe alimentava o corpo. Descobriu os contornos do sonho que acabara de ter – o segundo sorriso do ainda recém-nascido dia -, era isso que lhe conferia a particularidade de ser única.

Apeteceu-me

"Revolta-me o medo da ilusão, assim como me revolta a ilusão do medo" Charles de la Folie

segunda-feira, julho 06, 2009

Cálculo cénico

(…) Permanece imóvel, por um segundo apenas. Um pensamento desequilibra toda aquela quietude orquestrada pela sua frieza. Uma lágrima percorre-lhe o rosto, como aquela nuvem melancólica que a sombreia. Refresca a garganta com a sua própria saliva, em pequenos movimentos de ansiedade. A respiração altera-se, o peito consome-se num movimento repetitivo – como o deslizar da água do mar sobre a areia fina da minha praia –. Mais um passo, mais um pensamento que se exclui da minha consciência. E por ali fico imóvel, como sempre.

(…) Quando descobriu que dia era hoje, descobriu também que toda a sua vida tinha passado sem – ele – dar conta. Mais um dia a juntar a um passado escondido pela ânsia de viver o próximo, esgotando sempre a possibilidade de permanecer no presente. Nada disso faz sentido, se não existirmos. Apesar da existência por si só, não representar nada, nem mesmo o enorme vazio em que a vida assenta.


(…) Estava pintado em tons alaranjado, e assim permaneceu, naquele fim de tarde, o empíreo! Tinha um cheiro diferente de todos, fundia-se pela imaginação. Os sons, acompanhados pela aragem – que corria e corre – emancipavam-se do desespero provocado por mais um sorriso encenado. Há um palco vazio, um ponto sem retorno e uma vontade de representar a sua própria desistência. Uma premonição da vida que se segue.

(…) A queda era evidente, a altura considerável – devido à sua não idade –, mesmo que isso representasse o tempo e não a celsitude. Suspirou antes de se mover daquela quietude perturbante. Pela primeira vez, naquele segundo, formatava um esboço de um sorriso. Contido, mas supunha-se que existissem outros seguidos, plenos de um vício que é sorrir. A dor, dava lugar a mais um vazio, agora pertencia-lhe a obrigação de o preencher.

Apeteceu-me

“Calcular o tempo entre a vontade e o querer além de utópico é impossível” Charles de la Folie

sexta-feira, junho 26, 2009

Ódio (Inveja)


(…) Rebentou com o último sorriso passava pouco das cinco horas da tarde. Não era o sorriso que a preocupava, mas a falta dele – pensava. E se não voltassem mais? E se tivessem partido para longe, tão longe – na terra de «coisa» alguma – onde ninguém os conseguisse resgatar. A vida prendia-se num «Se» demasiado pérfido, quase intolerante. Afinal era isso que lhe consumia o brilho do seu corpo, de todas as palavras que se iam rescrevendo naqueles pequenos silêncios. Era o dia mais longo, daquele próprio dia.

(…) Fixou por um breve instante a expressão da sua face. Estava em agonia – num conflito – com o próprio espelho. A insegurança que se foi acomodando em si ao longo dos intermináveis meses. Estava representado naquele olhar. Numa tela sem cores, sem desenhos, sem representações, apenas ela mesmo em tons pastel. Inviolável e impenetrável pela surdina dos comentários recheados de malevolência e cobiça.

(…) Semblante fechado, naquela imagem quebrada há segundos atrás. Estilhaçada em milhares de cacos, produzindo um puzzle mental sem resolução aparente. Um dia apenas é o necessário para tudo se perder. Um apelo reproduzido no seu próprio eco penetrava lentamente na música do seu corpo. Na fronteira entre a indiferença e o passo em frente, ou as duas juntas num linha paralela. A culpa é um vicio.

(…) Apenas um minuto depois das cinco, o sorriso voltou como sempre. O Sol ultrapassava a teimosa nuvem que se acantonara na sua frente. O passo era largo, mas pausado. Os pensamentos desconexos de uma realidade que não a sua. A coerência da sua vida era suportada pelo seu respirar. Havia porém uma nuvem branca, onde sentado, descansava a vista sobre a cidade e que cidade.


Apeteceu-me


“Que importam as pessoas se não te importas contigo mesmo!” Charles de la Folie

domingo, junho 14, 2009

A Morte (nem sempre) saiu à rua

(…) Recordo aquele sentimento de morte. Da própria extinção do meu respirar. Agoniante apesar da calma, desesperante apesar do silêncio. Não me ocorreu uma ponta de medo, embora o escuro e a solidão. Até na morte nos sentimos sós. Seguramente triste pela indiferença. Suavemente agoniado com o protelar de um destino, se é que ele existe. E nós, onde fica a verdade de um «nós», tanto Universal como personalista. Vazio entre homens.

(…) Esteve presente – ela – enquanto cambaleava à procura do ar que me faltava. Enfrentei-a com dignidade, entregando-me. Venci-a. O ranger da porta numa madrugada amena, não despertou a curiosidade alheia. Nem nesse momento em que me deixei prostrar, sem forças para lutar, soltou-se-me a violência do desespero em forma de lágrima. O sufoco não me deixava gritar, nem podia. Estava em agonia.



(…) O cinzento da noite recai-me sobre o tronco. Ergui os braços ao Céu até soltar a vida e protelar a morte. Mesmo só, numa solidão imensa e intensa, a vida reerguia-se. Do alto o som dos passos que se iam escondendo numa impudência volátil. As portas trancavam-se, as luzes acendiam-se e voltavam a uma escuridão pérfida. Restava-me a minha esperança, aquela que se deita todos os dias comigo e me abraça num sufoco intenso. A mesma que me faz recordar a saudade.

(…) Sinto os pulmões a encherem-se de ar. Sinto uma brisa a entrar como a Primavera a chegar. Há vida, mas foge o momento. Há um segundo que se esvai numa hora inteira. Como o mundo que rodopia sem que ninguém se aperceba. Como o desejo ultrapassa o medo e nunca mais regressa. Hoje estou vivo, apesar de a Morte me ter rondado sem que eu fosse uma personagem.

Apeteceu-me

“Nem sempre uma resposta antecede uma pergunta” Charles de la Folie

sexta-feira, junho 05, 2009

Um dia na Cidade que me viu crescer

(…) Pernoito no desejo de crescer, de mostrar um lado diferente daquele que a Lua conhece. Não me lembro dos rostos, somente dos contornos. Do halo provocado pelo calor que nos liberta e molda – de uma forma simples –, apenas isso. Há um sorriso como muitos, metediço e leviano. Há um medo. Solta-se a palavra, de um momento para o outro liberta-se. A ansiedade reduz-se ao mais pequeno ponto dentro de nós, esse mesmo que nos vai construindo, num ensaio constante. Desmorona.



(…) Num pequeno trago de água, encontro os teus lábios perdidos na perspicuidade do desejo. O vocábulo reencontra-se com o espaço, indiferente à verborreia desenfreada de sentimentos que se abatem na saudade. Os cheiros misturam-se com as imagens de outros tempos. As muralhas do condomínio de outras épocas, abatem-se sobre – uma visão escurecida pelo – medo. A música que se esconde entre dedos, num tamborilar quase enervante, fala-nos de nós [gente].



(…) Aquele respirar ofegante que se solta em pequenas taquicardias, preenche o peito de dor, até rebentar vazio. Os olhos permanecem fechados à procura de sinais, pequenos vestígios irresolutos do ser e do não ser que se emprega na frase que ainda medeia a vida e a vontade de a ter. Fixa-se a imagem plana de um tecto alto, falso de preconceitos, sólido e robusto no seu recorte. Sobram os sussurros do meu «ponto» que continua sem me dar uma resposta. A pergunta é letal, a réplica de uma angústia fatal e sem retorno.



(…) É apenas a minha cidade, Santarém, não é Macondo, do Coronel Aureliano Buendía – repeti em desespero. Percorri a pergunta naquele silêncio que nos mata e alivia. Não havia ninguém na sala, ficou vazia no segundo momento em que a olhei nos olhos. Tinha que estar vazia, como a minha alma – minto. Estava elevada, sentia-me e sentia. Não era em vão que ali estava, as palavras iam ficando submissas à minha paixão e tornavam-se poderosas. Como poderosas são as que percorrem as páginas de «O Ladrão de Livros».



Apeteceu-me
“Não acredito nos passos falsos que não nos levam a lugar algum” Charles de la Folie

segunda-feira, maio 25, 2009

Trezentos mil




(…) A noite estava cerrada. A chuva dava um merecido descanso aos olhos enfadados do negro do asfalto. O brilho cadenciado – vindo de longe – esgotava-se no canto olho. O corpo tenso aniquilava-se no silêncio dos guerreiros que dormitavam nos braços de Morpheu. A música ténue que se esvaía de um qualquer canto a nada sabe. Sem sabor e imperceptível. Os pensamentos centram-se numa poesia espontânea e sem solução à vista. Estrofe após estrofe é rapidamente esquecida e perdida para sempre. Como a verdade e a mentira. Pode ser desejada por um pensamento, mas atenuada por um desejo.

(…) Está traçado o rumo. O cheiro das várias respirações concentra-se num só, numa viagem de sentido excepcional. Há uma missão cumprida, outra por consumar. Perfilha a noite e segue-a num destino pouco provável. Duas ou três estrelas libertam-se da muralha formada por nuvens invisíveis e indistintas. Desaparecem da cadência e da atenção do olhar, porque ali estarão, como sempre estiveram. O rumo mantém-se num «slalom» milimétrico e num ritmo imutável. Respira mais uma golfada de ar, vigia as trevas e sorrio naquela solidão pouco provável.

(…) Ao longe as luzes de um pequena ilha deixavam antever a veracidade do pensamento. Ebriamente acordado, num pensamento toldado às amarras da noite, fixava o olhar dormente nas luzes que se aproximavam. Por ali deixou ficar a minha memória, um segundo apenas, foi tudo o que ofereceu à mente. No outro segundo que restava desprendeu o olhar, apenas quatros almas adormecidas. Abruptamente a marcha é interrompida. O cor-de-laranja cintila no meio do Breu, nada fazia prever um desfecho daqueles. Um segundo depois alguém dançava – projectado pelas luzes de um carro –, sozinho, no meio da penumbra. Afinal não é todos os dias que se fazem trezentos mil quilómetros.

Apeteceu-me

“Vale a pena acreditar, nem que seja só por isso, acreditar” Charles de la Folie

segunda-feira, maio 18, 2009

Apresentação - O Ladrão de Livros - Porto

A Fronteira do Caos Editores, o Café Guarany e o autor convidam Vossa Excelência para a apresentação pública do livro O Ladrão de Livros a ter lugar no próximo dia 23 de Maio no Café Guarany, pelas 17 horas. A apresentação pública do livro está a cargo de Paulino Coelho da RádioRenascença.

Estão todos convidados.



Apeteceu-me

"Nem sempre somos norteados pelo infortunio" Charles de la Folie

quarta-feira, maio 13, 2009

Feira do Livro de Lisboa - sessão de autógrafos

A Fronteira do Caos Editores e o Autor convidam Vossa Excelência para a sessão de autógrafos do livro, O Ladrão de Livros da autoria de Carlos J. Barros, a ter lugar no próximo dia 17 de Maio pelas 18 horas, na Feira do Livro de Lisboa.

Feira do Livro - Stand C II - 18 - Fronteira do Caos - Gradiva

Apeteceu-me

"Sempre que me revejo, descubro uma ponta de saudade" Charles de la Folie

quarta-feira, maio 06, 2009

Requiem por coisa alguma

(…) O fim está cada vez mais perto. Vejo-te perder nos improvisos da minha lucidez – há minutos não estavas aqui – nem sempre ela lúcida. Saboreio o acerbo que se acumula nas pregas da minha mente, uma, duas e até três vezes. Corroboro com a indiferença de um olhar quase inerte e sem expressão. Os braços tombam em direcção ao chão, suspendendo-se na imagem quebrada de coisa alguma.


(…) A noite teima em não cair. A penumbra vai-se entranhando à espera de derrotar o crepúsculo do nosso sonho. Em vão rebolo de um lado para o outro à espera de adormecer – sozinho – sem alma e sem vontade. O cheiro à manhã que tarda, rompe entre os tecidos que me cobrem, provocando um arrepio de extinção, de pavor e de coisa alguma.


(…) Procuro no fundo da ilusão, as pequenas «coisas» – prazenteiras da vida – que nada me sugerem. A música surge monótona e discreta, num crescendo descrente. Numa evidente solidão, acompanhada por notas suaves que permanecem suspensas. E a vida? – pergunto devagar, sem afectar o ritmo das melodias de coisa alguma.


(…) Raramente vejo o sorriso que desperta as emoções. São pérfidas as palavras que saem da tua sombra, como ténues as lembranças que quero ter. Ilusões. Acidentalmente cruzo um olhar, rasgo a inocência de um instante e fico suspenso. Ao certo nada existe, na realidade, um momento não passa de coisa nenhuma que se fixa em nós, e ali permanece para sempre.



Apeteceu-me

"O silêncio acorda-nos a consciência e dá-nos a consistência da sobrevivência" Charles de la Folie

segunda-feira, abril 27, 2009

Apresentação - Ladrão de Livros - Alêtheia



(…) Respirei fundo como sempre. Um amargo percorreu-me o vazio do estômago, fechei os olhos e ali permaneci durante um segundo apenas. Viajei no primeiro silêncio, senti as notas de uma pequena melodia. Chegava a hora, finalmente estava rodeado de amigo. O corpo manteve-se retraído, na esperança que o momento permanecesse para sempre. Não estava preparado ainda para que o sonho se tornasse realidade. Nessa realidade que nos alimenta, sem mais sobressaltos.



(…) Acordei … um segundo depois. Reconheci a voz de uma amizade profunda, ali estava – como no dia em que alguém se foi – e tornou-a presente. Mais uma vez senti as lágrimas percorrerem-me, torneando a sombra da minha Alma. Sinto-me seguro, há um dia a renascer, uma palavra que sobrevive e um desejo de fugir à dor perigosa da solidão.




(…) Aos poucos, a liberdade de ser eu, foi-se entranhando naquela pequena fobia de falhar. O ar tornava-se finalmente respirável – para mim. A corda que me ornamentava o pescoço alargava-se. Os espasmos de ansiedade voltavam a resguardar-se numa solidão partilhável. Passo, após passo, descobri no meio de silêncios que afinal a compreensão vai muito mais além que coisa nenhuma. É por isso que sobrevivo a mim e aos meus erros.



Apeteceu-me

"Se a realidade não for sonhada como sobreviveremos!?" Charles de la Folie

segunda-feira, abril 20, 2009

Apresentação Lisboa : O Ladrão de Livros

A Fronteira do Caos Editores e o autor convidam Vossa Excelência para a sessão de lançamento do livro, O Ladrão de Livros da autoria de Carlos J. Barros, a ter lugar no próximo dia 25 de Abril pelas 18 horas, na Livraria Alêtheia. A apresentação pública do livro será da responsabilidade de Paulino Coelho.



Apeteceu-me

"O Hoje perde-se por entre a imaginação, projectado num futuro passado" Charles de la Folie

quarta-feira, abril 15, 2009

Música - O Ladrão de Livros




Música – “O Ladrão de Livros”

(…) Projecto o corpo para a frente, olhos fixos em nada, num movimento perdido pelo silêncio do momento. Lá fora somente a paisagem emoldurada por mim – que vai passando, passo após passo – na singeleza da sua função: existir por si só. Dentro de mim música. Os sons que me vão agitando as ideias, as personagens, os espaços e os desejos. Constroem-se nota sobre nota, como um edifício de coisa alguma.

(…) Foi com aquela música – lembras-te? Que te imaginei e criei. Cada vez que a assobio ou a trauteio, vens-me à memória. Sobes que sobes e não chegas cansada – esta é uma outra história onde não cabe a música como musa inspiradora – pelo dia em que te jogaste numa busca desenfreada da tua própria sombra. Vagueias pela margem do rio sonoro à procura das águas espelhadas para que soltem um dos muito egos presos em ti – personagem. (Matilde)

(…) O cinzento que se esvai das tuas veias, que fazem vibrar as tuas têmporas, procura as letras que roubas incessantemente. Há um medo constante em libertares todo o saber de uma memória. Há uma existência que coabita nos verdadeiros sons de uma cidade de pedra e de desejo. Rompe em pequenos círculos que vão chegando até mim a sua densidade e procuro a profundidade que necessitas. A melodia confere-me o desejo de te ir redesenhando ao seu próprio ritmo. (David)

(…) Viro página após página. Com os dedos dormentes carrego nas teclas em busca de um fundo, construído de palavras, frases. Procuro as lágrimas vertidas por escrita que dificilmente reconheço. A música parou, eu parei, o mundo ergue-se, as folhas movem-se: desfolhadas por ti.

Apeteceu-me

“A insegurança faz parte da nossa incapacidade de nos absorvermos” Charles de la Folie.


A Fronteira do Caos Editores e o autor convidam Vossa Excelência para a sessão de lançamento do livro, O Ladrão de Livros da autoria de Carlos J. Barros, a ter lugar no próximo dia 25 de Abril pelas 18 horas, na Livraria Alêtheia. A apresentação pública do livro será da responsabilidade de Paulino Coelho.

Já há data e espaço para o Porto...