sexta-feira, janeiro 29, 2010

La vie en Rose II

(...)Perto das duas da manhã foi para casa, mesmo feliz o cansaço aparecia para a derrear. Não a vencia, tornava-a apenas cautelosa. Consigo levou de boleia a mãe de uma colega nossa. Seguiram as duas braço dado rua abaixo. Não era uma rua qualquer, era a Travessa dos Pasteleiros. As mãos param, as letras não saem, o sorriso desperta envergonhado. Naquela rua estreita, ladeada por casas que me viram crescer, virada a nascente, onde a luz do Sol se acende cedo. Um pequeno trecho de uma cidade cheia de sons e cheiros. Em apenas poucos metros consigo descobrir o burburinho de todo um universo que se aviva em mim. Recordo o cheiro a vinho que fermentava nas goelas de homens sem rosto, numa taberna escura e arroxeada. O tilintar dos copos assentes num tabuleiro de metal, o qual recolhia o vinho que saia das pipas para mãos anónimas em direcção à alma. Do outro lado o som do martelo a embater no couro, pequenas batidas sistematizadas transformava os sapatos velhos e esburacados em apenas sapatos velhos. Vejo nitidamente o sapateiro sentado num banco onde parecia nunca de lá ter saído, avental de cabedal, sujo da graxa que não a dos homens, a olhar para fora pelos óculos grosso de hastes pretas e fartas, como se fosse hoje. Apenas acena a cabeça num cumprimento rápido mas cordial. Mais à frente o bramir das tesouras – uma sonância metálica característica e nervosa daquele instrumento –, a cortar no vazio, para depois descer e desferir um corte certo no cabelo que cai inerte no chão de madeira tão gasto como as almofadas de veludo verde, daquelas cadeiras ainda de cerâmica e metal. No ar a fragrância a lavander que se entranha nas mais recôndita memoria. O fio da navalha embate na pedra que o afia, a barba escondida pela espuma branca está prestes a ser desfeita. Cada passo que é dado, há um novo Mundo. Na porta verde-garrafa, quase sempre entreaberta, esconde-se um pequeno mundo de máquinas que rodam a uma velocidade estonteante. É viciante olhar para elas, nada se vê apenas o movimento ritmado, numa música plúmbea e repetitiva. As mesmas letras, as mesmas palavras, vão saindo sem fim, são empilhadas mecanicamente. Uma outra faz precisamente a mesma coisa, apenas mudam as palavras, as frases e quem sabe os desejos. Há papel sem fim, apenas papel, apenas uma forma de se representar. Apenas isso, um mundo tipográfico. Num pequeno pátio levanta-se do chão uma cisterna com tantos anos que não sei contar. O verde das flores escondem vários armazéns, cheira a borracha, a cortiça e a plástico. Apenas cheira, o que se ouve confunde-se com a vida daquela pequena travessa, que no primeiro dia de dois mil e oito era atravessada por Julieta de braço dado com a sua amiga. Alguém disse ao ver aquele cenário: - Ela não tem medo de nada – de facto ela sentia-se em casa naquelas ruas de Santarém cheias de gente.

Apeteceu-me
"As saudades fazem o seu trabalho: produzem saudades" Charles de la Folie

quarta-feira, janeiro 20, 2010

"La vie en Rose"

Não é fácil recordar palavras que nunca tinha ouvido ou presenciado. Eu estive lá, por isso conheço-as. Estranho sentimento este. Um vazio apodera-se do meu estômago, forma um buraco sem fundo que se vai engolindo a ele próprio, numa espiral perplexa. Cada carta que abro, nasce uma nova história, um novo desafio. Há um paralelismo em cada momento, que é vivido intensamente neste desembrulhar de mistérios. Torna-se um vício, uma droga, um desesperado acto de degustar a historia que não conheço e da qual faço parte. As mãos param, enquanto solto o olhar inexpressivo sobre as palavras que germinam no papel branco – fictício – do meu computador. Olho-as e sinto-as aproximarem-se de mim sem que elas me digam alguma coisa. Não as consigo ver, muito menos ler. Saem, apenas isso. Soluçam tal qual o choro sentido de uma criança que se esconde no canto escuro de uma sala imaginária, onde as sombras se debruçam num apelo que se rasga com o passado. Pergunto ao tempo onde posso procurar as lágrimas que se desprenderam deste amor. Pergunto ao tempo, quanto dele falta para entender o que escuto, quanta alma é precisa para se escrever uma história que é construída a partir de uns olhos que se cruzam entre grades. Uma história que se fecha e abre num plateau perfeito, no qual não foi permitida assistência.


Apeteceu-me

"Não há silêncios que nos ensurdeçam, mas há agonias que nos matam" Charles de la Folie