terça-feira, fevereiro 23, 2010

No dia em que deixei de escrever

Não me lembro ao certo porque acordei. Estava sozinho, o som da cama agoniava-me assim como o sol que entrava pela fresta do estore. Era um domingo ou uma quarta-feira, não tenho a certeza, talvez um sábado ou uma sexta-feira Santa. Tinham silenciado a música, já antes tentaram silenciar os dedos no matraquear titubeante e sonolento de um ritmo tão peculiar. Ouvi os passos repetidos de quem espera no piso de cima. O tempo em que ninguém acredita passava e os passos repetiam-se numa fúria sem fim. Os gritos abafados pelo chão que nos mediava, apenas transpareciam raiva. Ouvia a rua nas suas palavras indistintas, conversava com quem por lá passava, pessoas sem rosto, todas elas vivas no seu percurso.

Caí pelo buraco que se rasgou no chão, escuro e perdido na vontade de cair. Um escuro dormente, sem pensamentos lúcidos, também eles rasgados, por onde voltava a cair. A velocidade adensa-se pela ansiedade de chegar onde nunca esteve. Os olhos cegos pela venda do tempo abrem-se naquela espiral longa e sem sentido.

Uma luta desinteressante na descida à solidão termina em mais um rebolar na cama, num sonho perdido e de traições. O corpo quebrado movimenta-se lentamente, as mãos cravadas nos lençóis ajudam a balancear para mais uma descida, desta vez para assentar os pés na madeira do soalho. Uma caminhada até longe, tão longe quanto o pensamento me leva. Desejo apenas que as palavras deixem de sair das minhas mãos. Os dedos quebram-se e doem. São amargas e entranham-se nas fissuras da pele. Rebentam-na em pequenas erupções, numa laceração terrível. O pensamento também não pára, nem o tempo, nem a dor, nem a tinta. As imagens saltam naquele pequeno percurso que leva a lugar algum, viajo apenas naquele mutismo em que ouço a pena a rasgar o papel, tal proa o mar. Mergulho num propósito de afogar os vocábulos, as frases e a música que delas sai. Recordo agora o azul que deve lá estar fora. O vento que sopra ao acaso, as nuvens que soluçam lá no alto, junto ao azul que acredito lá estar.

Apenas sinto que já não consigo pintar uma imagem. Amarga e desfoca. Violo-a sem sentido e sem querer. Viro as costas, mas a imagem não se solta deste meu desprezo, está gravada, não desce pelos meus dedos, fica presa na dor dos meus instintos. Revolta-me saber que não existo, revolta-me acreditar num tempo que já passou, revolta-me o espelho que não me oferece um rosto. Desisto de ser, de ver e de respirar num suicido em que as letras deixarão de dançar na ponta do meu prazer.



Apeteceu-me

"As mãos que escrevem poemas também podem odiar" Charles de la Folie

terça-feira, fevereiro 09, 2010

La vie en Rose III

(...) Escrever sobre Ela ao som de Edith Piaf é algo indescritível, maravilhosamente indescritível. Os dedos tombam sobre as letras, numa descida vertiginosamente suave. A arrogância da língua francesa quando musicada torna-se melífera, um doce a que só a voz de Piaf consegue conferir. No acordeão que enche aquelas canções descubro o olhar simples, mas penetrante de minha Mãe. Há um crescendo de cor cortado pelo sorriso que sobra dos lábios esbranquiçados da sua inocuidade. Estão longe do calor que lhe aquece o amor, apenas a reminiscência lhe oferece um desejo incorpóreo. A alma está presa no fundo da menina-do-olho, consegue-se ver pelo vítreo de uma lágrima que sufoca de saudade. A mesma que encontro prestes a bailar pela sua face. A música de Edith, a sua forma de se expressar, o sofrimento com que liberta cada nota conta-me histórias perdidas num vazio que se compreende, mas não se consegue explicar. Não é um vazio de espaço, mas sim o incorpóreo que nos rodeia onde acredito que se encontram todos os dizeres e sentimento que libertamos pelos poros; tudo o que sentimos e que se liberta está nesse vazio. Tão simples como isso. Volto a um quebra-cabeças antigo meu: para onde vão as lágrimas depois de choradas e vertidas. Os nossos sentires devem ter um armazém algures, são libertados por nós, as lágrimas, os choros, os gemidos, os gritos, a dor; acredito que estejam nesse vazio tão cheio de nós. Acredito que a nossa transparência se solte e viaje por onde nós não sabemos. Porque será que há gente a quilómetros de distância que sente saudades nossas, nos vêem e nos experimentam, tocam e escutam-nos. Porque estamos lá, mesmo que contra a nossa vontade há muito que é nosso que não nos pertence.

Apeteceu-me


"Gosto de perceber que o som dos dias se renova a cada dia" Charles de la Folie