terça-feira, outubro 27, 2009

(…) Naquele corredor, apenas naquele, onde o grito saía abafado, ao descoberto de coisa nenhuma. Sentiu o desejo de não regressar mais. Estava aturdido, não recordava o porquê. Havia um certo sabor a insónia, o corpo esgaçado disso mesmo, das voltas sem fim no chão daquele enorme corredor. A luz quebrava-se contra o silêncio do seu olhar, todo ele inexpressivo. As paredes secas de cor, o tecto isento de reflexo, o dia lá fora desunido de tudo. Procurava apoiar-se no balanço do seu crescente alheamento.

(…) O chão, escorregadio juntava-se à escuridão daquele espaço infinito. Talvez terminasse naquele – tão seu – abismo. Ouvia-se contar que houve tempos em que brincavas na fímbria dele, como se não tivesses limites, hoje as lágrimas, apesar de não passarem do umbral dos seus olhos, ali permanecem na ilusão de coisa alguma. Falas do precipício como se fosse tão teu que não te consigas afastar dele e hoje, onde vives?


(…) Tacteava as paredes, unidas, sem portas nem janelas, apenas a fresta do teu corpo. Uma brisa – causava um arrepio de abolição –, provocada pela passagem da tua existência, toda ela em si provocante. Mas ali estavas presa, suportavas uma dor inquietante. O desejo, o querer, ofuscado pela vingança. A saudade e a esperança, escurecidas pela cobardia. Nem mesmo o ajeitar da ponta do cabelo que se soltava numa estranha musicalidade, te libertava da escuridão.

(…) Mais um passo dado em direcção ao fim que nunca mais acaba. É nesse pensamento que deixas cair o teu mais tímido sorriso. O mesmo que escondes debaixo dos lençóis, resguardado dos segredos que são só teus. Passo a passo procuras a direcção exacta do teu medo. Fechas os olhos, e não notas a diferença entre o que vias e o que acabas de ver. Da mesma forma que não acreditas que o fim apareça sempre do mesmo lado. Não há lado, apenas a lembrança que os lados da tua Alma te doem.

Apeteceu-me

"Basta uma nova direcção, para acontecer um desvio" Charles de la Folie

quinta-feira, outubro 08, 2009

“Aqui há pena de Morte – Diário de um sem abrigo”

“- Morada? – o coração começou a bombear o sangue violentamente, provocando-me uma ansiedade. – Não tenho morada minha senhora! Aqui, neste local onde me encontro, sentado e com o coração a bater, sou um número que uns querem subtrair e outros somar.”
Eis o diário comovente de um sem-abrigo, um grito de desespero com um sabor acidulado a solidão.
Cap, Russo, Cenoura, Joe, Crava… deambulam pelas ruas de Lisboa quais soldados numa luta inglória. Conhecem de bem perto as agruras da vida, mas cedo aprenderam a amortecer as pancadas diárias e vivem numa enorme solidariedade.
Cap tem a seu cargo este exército invisível e uma missão, ajudar os outros sem-abrigo a aguentarem-se nas ruas e a protegerem-se do torpor da pena alheia. Perdido entre o presente da sua vida de indigente e o passado que não consegue lembrar, retrata-nos, numa visão fina e arguta, uma Lisboa pouco atenta à indigência.
Cap possui uma cultura ímpar e uma alma de poeta, é um sonhador. Nos seus sonhos fantasistas o beijo come nuvens, os campos abraçam, os mimos desprendem-se das árvores.
Quando conhece Rita perde-se na imaginação do amor. Sentir os lábios de Rita nas suas bochechas cadavéricas transporta-o para uma outra dimensão. Mas terá um sem-abrigo direito ao amor? Ei-lo confrontado com a vontade de se apaixonar e a vontade de prosseguir uma missão de sobrevivência.
“Há quem não acredite em nós, quem nos considere uns dissimulados, mas quando tombamos aqui…é demasiado difícil de nos voltarmos a levantar.” E pode acontecer a qualquer um de nós!
Cap, porém, pondera erguer-se e partir…

Para breve numa livraria perto de si...


"Temos de continuar o percurso, mesmo que seja difícil levantar as pedras que nos atiram." Charles de la Folie