quarta-feira, dezembro 30, 2009

"Aqui há pena de Morte"


(...) Um grito abafado de desespero surgia de uma densa e angustiante escuridão. Tinha um sabor acidulado a solidão. Um choro seco e abnegado levantava-se do pavimento, em direcção a um enorme vazio. Os sons eram inteligíveis, o cheiro nauseabundo e a esperança nula. Martelavam-me, naquele instante, sons inconstantes de uma música mutante que funcionava como um parasita que me comia a razão – lenta e ferozmente. Tinha as mãos embrulhadas em luvas improvisadas, feitas de peúgas e de trapos encontrados no lixo. Escondido numa sombra gélida e impessoal, via as luzes de um mundo cruel. Acendiam e apagavam, mudavam de forma, reformulavam cenários vindos da ganância do «homem». Apelavam, numa estética geométrica, à ruptura do – ser solidário. Nas minhas costas sentia o frio húmido das noites. Ultrapassava os limites da minha roupa, entranhando-se abruptamente nos meus ossos. Já não sentia a dor, nem a dignidade de estar vivo – sobrevivia à minha própria vontade de terminar com aquele sufoco, cada vez mais pronunciado. Vários cartões resgatados ao lixo serviam para me cobrir do olhar da Lua. Tinha vergonha de ser visto por olhos mais atentos. Percorria-me um calor húmido pelo baixo-ventre, chegava-me até ao meio das pernas, aquecia-me com a minha própria urina. Ficava quieto – muito – na esperança de acordar daquele pesadelo. Adormecia num sono vigilante, sempre com os olhos prostrados na incerteza.(...)

In "Aqui há pena de Morte - Diário de um sem abrigo" - Brevemente disponível.

Apeteceu-me
"Nâo há tempo nem lugar para nos perdermos com as grandes coisas... essas fazem parte da mesquinhez humana" - Charles de la Folie

quarta-feira, dezembro 09, 2009

Livro (de ninguém)

(…) Desfolhava o livro, como quem faz amor. Movimentos simples, mas profundos. O olhar concentrado juntava as palavras que caminhavam à velocidade daquele olhar compenetrado. No espaço entre as folhas -amareladas pelo tempo – e o observar, juntavam-se ideias e utopias. Os dedos que marcavam o passo da sua leitura, tremiam na ansiedade de chegar ao fim. O rosto consumido pela concentração, abria rasgos de desassossego. Lá longe nada se erguia, estava vazio, o mundo concentrava-se naquele pequeno espaço de ninguém.

(…) Passavam já alguns minutos depois de nada. O tempo estava parado. Os olhos movimentavam-se assimetricamente. Apenas um respirar balançava entre dois mundos. O dela, rasgado por imagens e o dele, escrito no próprio patíbulo. Os universos eclodiam numa distância proporcional e indizível. Até hoje ninguém descobriu o sentido exacto da sua predicação. Ela apenas voou sobre as palavras que acabara de achar dentro de si. Um sémen de vocábulos.

(…) O escuro que a rodeava, esbatia-se na luz do seu rubor afogueado. A posição incómoda, fazia-a rebolar na cama. O livro colado nas mãos – delicadas e aguçadas –, mantinha-se aberto. Mais uma vez o semblante fechava-se, para logo em seguida despertar um sorriso, apenas um. Molhava o dedo, nos lábios húmidos e desfolhava mais uma página. Um segundo apenas, para ordenar as ideias e logo retomar a ordem das palavras. A noite lá fora esperava por ela.



(…) Fechou o livro sobre o seu dedo, uma marca de si, colocada nele. Apenas isso. Engoliu em seco enquanto colocou o manuscrito no seu peito, a perscrutar o som abafado de um coração discreto. A cabeça colocada na almofada, olhos fechados, respiração controlada, imaginava-se dentro dele. Seguiu a história com os seus olhos escondidos pelas pálpebras que se mantinham fechadas. No dia seguinte, alguém pegou no mesmo livro e o fechou num armário. Fala-se que foi suicídio, talvez…

“Nem sempre se desfruta o tempo, mas o tempo passa por nós e desfruta-nos" Charles de la Folie