segunda-feira, março 29, 2010

La vie en Rose VI

Já em Santarém a nossa amiga médica sugere-lhe comprimidos para as dores. Como sempre teimosa prefere suportar uma dor a tomar um comprimido. Rejeitou-os – fazem mal ao fígado – dizia rabujando, Julieta era assim nas suas convicções. A minha irmã – nas suas convicções e na simplicidade dos seus actos e agilidade de pensamento – em desespero deu-lhe dose dupla de um analgésico. A nossa mãe apercebeu-se e mesmo debilitada ainda tentou bater-lhe. Era assim um poço de convicções que também elas começavam a desvanecer-se. Debate-se agora com a fala: falha. Tem dificuldade em soltar as palavras. Deixaram de ser como as cerejas, como as ovelhas que pastam nos prados improvisados da paisagem da sua janela. O vento já não empurra as nuvens que se formam por cima de si. As figuras tornam-se ridículas e assustadoras. A força do seu sopro já não é suficiente para as afastar. É mais uma aflição que tem de gerir na tão debilitada cabeça. É preciso gerir. As emoções rompem com o corpo e formam um halo que nos segue. Há uma dificuldade extrema em viver os segundos que galgam no tempo, num tic tac constante e espesso. Apercebo-me outra vez que o tempo é contínuo, não pára. Mas sinto-o parado na dor. Abre uma ferida que o polegar do tempo oprime num cinismo descontrolado. Sem pudor. Defendo-me com respirares curtos para que as lágrimas permaneçam no umbral dos meus olhos. Quero olhar dignamente para Julieta, não a posso ver desfocada pelo choro incontrolado que tenho vontade. Vivo numa tortura constante tal é o meu egoísmo. Do outro lado está Julieta num sofrimento evidente, físico e psíquico. Aparentemente aguenta-se melhor que nós. Aparentemente conforta-nos. Aparentemente sobrevive nela o seu sorriso que mascara os esgares de dor. Aparentemente: só isso.
Estou na minha última folha de notas, respiro fundo. Bem fundo onde uma pequena dor parece arrancar-me o estômago do sítio. É desconfortável. Tenho a sensação que a densidade do oxigénio se solidificou. Custa a entrar; custa a seguir o seu caminho pelas vias respiratórias. Algo carrega às pazadas para dentro de mim o ar que crava e grava um ardor à sua passagem. Mais facilmente sai o dióxido de carbono que me deixa descansar naquele limbo temporal entre a vida e a morte. Não é uma expressão dramática ou de dramatismos exacerbados. Nem sequer uma metáfora. É simplesmente um aspecto da nossa sobrevivência. Se ficássemos para sempre entre a inspiração e a expiração sucumbíamos asfixiados com as nossas dúvidas. Na realidade enquanto descrevo o que sinto, não me vejo obrigado a passar os olhos pela folha de letras – certas no seu formato – que me recordam o que não me sai da mente nem por um segundo. É difícil explicar: serenei essas visões, aprendi a viver com elas a toda a hora, mas ainda não recuperei o sorriso. Precisava de voltar atrás no tempo para devolver os sulcos que me rasgam a fronte e recuperar as covas do meu sorriso. Tenho que enterrar o azedo da vida, o machado de guerra, da minha guerra e acreditar como o Carlos Oliveira que: “Não há machado que corte a raiz ao pensamento…”


Apeteceu-me



"Nem sempre descobrimos o que queremos esconder" Charles de la Folie

quarta-feira, março 17, 2010

La vie en Rose V

(...) No meio da escuridão há sempre uma luz que brilha, bem como na solidão há sempre alguém que nos guia. Perco-me nas metáforas neste espaço curto onde me prenderam, agrilhoado pelas palavras e pelas mentiras que dizem sobre nós. Sobre mim. É o que sucede quando me encontro às escuras só; aparece sempre uma sombra que vagueia na luz amiga e protectora que me vai acompanhado e alumiando caminhos tão dispersos como a minha alma que se concentra em ti. É uma vida ingrata, mas batalho contra a intempérie com o conforto que essas armas me dão. Claro. Quem é essa luz e sombra? És tu na tua intermitência, nos teus receios. Sabendo que estás sempre perto também sei o longe que estás. Sei o que o meu coração diz e lembro de como batia o teu. Só isso. Mesmo assim és a única alegria que tenho. São os meus monólogos eu sei mas servem para ir separando os meus medos, as sensações vãs e cruéis que me abafam a respiração e me obrigam a verter lágrimas. Dizimo o ânimo dos meus inimigos no meu subconsciente e vou vencendo as batalhas que me aparecem. Sei que é tudo tão frágil, tão impossível, tão volátil, mas acredito que lá chegarei.

Acompanhas-me nos pensamentos. Ficam mais racionais, mais autênticos com a tua presença. Deixam de ser apenas espirais e círculos que terminam sempre no princípio perdendo-se na sonolência que criam. Basta o vento soprar-te para te ter naquele teu jeito de menina rebelde mesmo que isso signifique apenas o desejo de te ter sempre ao meu lado. Nessa impossibilidade tenho-te em mim. A tua sombra desvia-me da mortandade do meu raciocínio pérfido e repetitivo. Levas-me para longe. Para sítios que acredito que não saibas que existam nessa perfeita ingenuidade. Só sei que me empurras para bons caminhos. Nem a arma carregada que se encontra perto da minha cabeceira me provoca tentações. Um dia sobrevoarei o desejo de mão dada contigo, agora apenas compadeço sonhando-te. Há sempre um braço amigo que me ampara quando me sinto perdido nos momentos mais sombrios. A escuridão da vida pecaminosa que me imputam vacila perante o teu braço. O braço da tua – minha – lei. Esse sorriso dá vida a um moribundo. Essa solidariedade não me deixa sucumbir perante a escuridão onde a tua sombra se move só para me libertar.

Não sei como te agradecer. Como pagar numa moeda plausível e indistinta o alento que me sopras. O pensamento mantém-se longe das mandíbulas que nos trituram o cérebro. Delicadamente afasto esses pensamentos para não te desagradar e assim evito-me. Leio nas nuvens que me envias que o tempo se esgota. Leio que é preciso aproveitar e alimenta-lo com amor. É preciso sentir. Paro de escrever para observar no reflexo da janela esta palavra: sentir. O sentir é mais forte que tudo. Está em nós, na nossa carne, nas nossas cogitações. No choro, no rir, na raiva e na angustia. O sentir aparece como uma flor na palma da nossa mão. Reaparece nos lábios nas palavras de cólera que arremessamos a quem se intromete. Reencarna no silêncio das pequenas agruras existenciais. Na música que nos anuncia a Primavera. No suor de quem trabalha a vida. Mas gosto de sonhar que um dia encostarei a cabeça no teu peito e vou sentir o teu pequeno coração a bater o meu nome. Sinto-o e pressinto-o. Não é só um desejo é também uma vontade. Tem a força de mil homens.

Nestas minhas palavras que se perdem neste papel que um dia irá amarelecer. Vejo-te na imensidão de todo o vazio que varro com o olhar. Apenas te recordo, o pensamento foge, galga barreiras para poder estar junto a ti. Essa saia recortada, essa blusa justa, os caracóis no negro do teu cabelo. Os olhos que sobressaem desse bonito rosto, coroado pelo veludo dos teus lábios. As mãos unidas. Os pés fincados num chão que não vejo. Pois a tua imagem está suspensa no meu respirar. Não te peço – mais – que tenhas confiança em mim. Sei por intuição que sabes quem sou e o que sou. Tens medo e o mundo está a desabar-te em cima. Respiro fundo por ti. Lembro-me do que me disseste um dia: “És pobre materialmente, mas rico de sentimentos e com um coração enorme”. Ainda hoje as sinto aqui dentro de mim. Funcionam como combustível na esperança do dia-a-dia. Sobrevivo com elas. Dedico-me a ti. Suponho-me num precipício onde abro os braços como Cristo na cruz. Pés juntos na fímbria do vazio. Na linha do olhar apenas nuvens que não consigo agarrar. Saboreio o frio que me toca no rosto. Os joelhos flectem-se com o peso da vontade. O corpo eleva-se num tremer descontrolado. Os olhos fecham-se. Flutuo agora numa descida vertiginosa. É minha. És minha. agarro-te antes de acordar desse sonho que avassaladoramente se queria tornar num pesadelo. Apanhei-te e acordei antes de me estatelar no chão. (...)



Apeteceu-me
"Um dia vou descobrir que o fim-do-mundo vive em mim" Charles de la Folie

sábado, março 06, 2010

Na manhã seguinte levantei-me com o sabor amargo de uma noite de copos que não tinha bebido. A cabeça pesava, os olhos semi-cerrados tentavam encontrar um ponto de equilíbrio entre a luz e as trevas. As pernas rombas e titubeantes tocavam o chão como se fossem virgens. O bater do coração retomava o ritmo depois de várias taquicardias. Uma noite vigilante no pensamento que doía. Nada de novo a não ser o desconhecimento profundo do que acreditava ser o fim. As mãos trémulas procuravam o aconchego numa chávena de café. Uma dose para acalmar um sistema por si só combalido e ferido. O dia lá fora ria-se. Já tinha sacudido toda a água de uma noite de tempestade. As nuvens tinham partido cinzentas para dar lugar à cor das pessoas que correm na azáfama de sábado. A praça verdejava com os seus legumes à porta. O cheiro a mar rompia a alma vinda das camionetas chegadas da lota. O tempo lutava com a ansiedade que vencia o pensamento. O pensamento vencia a apatia de uma noite mal dormida. Um círculo instalava-se em todos os movimentos cognitivos, como se uma brecha irrompesse debaixo de onde passava, um sulco inventado mas sem fim. Perdia-me nesse buraco num luta intensa com cada imagem de mim. Acto contínuo percebia que estava errante num mundo sem respostas. Sorria porque sabia a resposta só não a queria ver, muito menos enfrentá-la. Um dia de cada vez, disse-me Julieta quando descobriu que o empíreo se abatia sobre ela. Hoje vejo isso, mas ontem também apenas o pânico de enfrentar a verdade me obrigava a fugir num acto cobarde para comigo.

Cheguei ao IPO por volta das onze da manhã, estava calmo e respirável. Nas escadas o cheiro a desinfectante, nos corredores apenas os murmúrios das enfermarias. Os passos – que por aquele imenso corredor me levavam ao quarto onde estava a mulher que me deu à luz num qualquer verão de mil novecentos e sessenta e quatro – eram firmes. As lágrimas espreitavam pela janela da alma. Uma música saía tímida dos meus lábios, sei perfeitamente qual era: “To Sheila” dos Smashing Pumpkings; fiz dela a minha companheira das horas tristes, fez-me sentir vezes sem conta forte e real. Ultrapassava assim o crepúsculo das minhas incertezas mesmo que fosse num destino incerto. A porta do quarto estava entreaberta, no tecto um televisor debitava notícias. Ao fundo a rua entrava pela janela sombreada pelo silêncio dos vidros. Senti o vazio arrepiante do quarto, duas camas vazias e um respirar forte. Julieta estava encoberta pela porta. Óculos na ponta do nariz: a expressão regressara ao seu rosto. Um sorriso magnífico, igual ao sol que reflectia num prédio espelhado em frente. Nas mãos o jornal que lia com a vontade de todos os dias. A doença tinha-se ausentado para parte incerta e tinha deixado aquela alma entregue ao que ela sempre fora. Fiquei incrédulo – lembro-me – mas contente ao vê-la espantada a olhar para mim perante tamanha admiração. – Que se passa, parece que viste um fantasma – disse e voltou a olhar para o Correio do Ribatejo – já viste quem morreu – perguntou. Limitei-me a fitar o jornal sem o ver. Estava divertida como sempre fora. Fui atirado para dezenas de quilómetros dali, percebi que se sentia em casa apesar de estar naquela cama.



Apeteceu-me

"Grande parte do dia é alumiado pelos sonhos" Charles de la Folie