sábado, março 06, 2010

Na manhã seguinte levantei-me com o sabor amargo de uma noite de copos que não tinha bebido. A cabeça pesava, os olhos semi-cerrados tentavam encontrar um ponto de equilíbrio entre a luz e as trevas. As pernas rombas e titubeantes tocavam o chão como se fossem virgens. O bater do coração retomava o ritmo depois de várias taquicardias. Uma noite vigilante no pensamento que doía. Nada de novo a não ser o desconhecimento profundo do que acreditava ser o fim. As mãos trémulas procuravam o aconchego numa chávena de café. Uma dose para acalmar um sistema por si só combalido e ferido. O dia lá fora ria-se. Já tinha sacudido toda a água de uma noite de tempestade. As nuvens tinham partido cinzentas para dar lugar à cor das pessoas que correm na azáfama de sábado. A praça verdejava com os seus legumes à porta. O cheiro a mar rompia a alma vinda das camionetas chegadas da lota. O tempo lutava com a ansiedade que vencia o pensamento. O pensamento vencia a apatia de uma noite mal dormida. Um círculo instalava-se em todos os movimentos cognitivos, como se uma brecha irrompesse debaixo de onde passava, um sulco inventado mas sem fim. Perdia-me nesse buraco num luta intensa com cada imagem de mim. Acto contínuo percebia que estava errante num mundo sem respostas. Sorria porque sabia a resposta só não a queria ver, muito menos enfrentá-la. Um dia de cada vez, disse-me Julieta quando descobriu que o empíreo se abatia sobre ela. Hoje vejo isso, mas ontem também apenas o pânico de enfrentar a verdade me obrigava a fugir num acto cobarde para comigo.

Cheguei ao IPO por volta das onze da manhã, estava calmo e respirável. Nas escadas o cheiro a desinfectante, nos corredores apenas os murmúrios das enfermarias. Os passos – que por aquele imenso corredor me levavam ao quarto onde estava a mulher que me deu à luz num qualquer verão de mil novecentos e sessenta e quatro – eram firmes. As lágrimas espreitavam pela janela da alma. Uma música saía tímida dos meus lábios, sei perfeitamente qual era: “To Sheila” dos Smashing Pumpkings; fiz dela a minha companheira das horas tristes, fez-me sentir vezes sem conta forte e real. Ultrapassava assim o crepúsculo das minhas incertezas mesmo que fosse num destino incerto. A porta do quarto estava entreaberta, no tecto um televisor debitava notícias. Ao fundo a rua entrava pela janela sombreada pelo silêncio dos vidros. Senti o vazio arrepiante do quarto, duas camas vazias e um respirar forte. Julieta estava encoberta pela porta. Óculos na ponta do nariz: a expressão regressara ao seu rosto. Um sorriso magnífico, igual ao sol que reflectia num prédio espelhado em frente. Nas mãos o jornal que lia com a vontade de todos os dias. A doença tinha-se ausentado para parte incerta e tinha deixado aquela alma entregue ao que ela sempre fora. Fiquei incrédulo – lembro-me – mas contente ao vê-la espantada a olhar para mim perante tamanha admiração. – Que se passa, parece que viste um fantasma – disse e voltou a olhar para o Correio do Ribatejo – já viste quem morreu – perguntou. Limitei-me a fitar o jornal sem o ver. Estava divertida como sempre fora. Fui atirado para dezenas de quilómetros dali, percebi que se sentia em casa apesar de estar naquela cama.



Apeteceu-me

"Grande parte do dia é alumiado pelos sonhos" Charles de la Folie

2 comentários:

Margarida disse...

e às vezes os sonhos são apenas uma pequena parte do pesadelo.

beijo grande em ti!

continuando assim... disse...

convite para seguir a história de Alice, lá no
--- continuando assim... ---

vai do capítulo 4 , e ainda há tanto para contar ;)

bj
teresa