quinta-feira, abril 19, 2007

O canto



(…) Estava no canto, não num canto, mas no canto daquela enorme sala. Costas encostadas na parede, uma enorme parede, amarelada do fumo dos enormes tarolos que ardiam dias a fio naquela lareira com tantos anos, como vidas que por ali se aqueceram.

Podia ser um dia como outro qualquer, adorava sentar-me ali na escuridão de uma sala centenária, onde a musica se misturava com o crepitar do lume. Gostava daquele cheiro a carvalho queimado. Gostava de mim. Estava perdida na notícia que acabada de imaginar que um dia iria irromper por aquele espaço.
Custava-me respirar, cada lufada de ar que levava com mais força para dentro de mim, doía-me. Sentia os peitos a saírem-me do corpo, deslizam-me com força naquela camisa de flanela, uma camisa grossa, velha, tão velha como o seu cheiro, o cheiro do meu avô que eu tanto adorava.
(…) Estava presa em mim, restava-me a tormenta de estar só por ali. A dúvida insistia, nos meus mistérios, aquela noticia que me assolava os pensamentos, que não passava disso, de pensamentos, os quais eu não queria que algum dia se tornassem realidade.
Temia-me, temia a minha tristeza, o fracasso do meu tímido sorriso, queria-me muito.
Estava a olhar para as palmas das minhas mão, e ali estava a minha vida toda. O meu destino. Como se eu acreditasse nisso, nem nisso nem em profecias, acreditava em poucas coisas. Acreditava naquelas vozes que me faziam estremecer por dentro quando me sentia sozinha. Aquele medo, que não passava de vontade de me ter e de me sentir.
Apetecia-me cruzar os braços, cravar as unhas ombros e deixa-las deslizar suavemente, depois lentamente aconchegar-me, apertar com força a zona abdominal e faze-las subir até me sentir segura. Um estrondo lá fora, a noite faz-se dia durante alguns segundos. As sombras movimentam-se, alteram-se como o meu corpo. O medo apodera-se, os olhos enchem-se de sangue. Há estranhos bailados por ali, o meu corpo dança de pavor, treme de pânico.
Lembro-me de coisa alguma naquele momento, sei que estou, como estava encostada naquela parede, sei que me sinto dormente. O soalho onde me sento, parece estar a dar de si, como eu me quereria dar a mim. Rangia, parecia um gemido, talvez quem sabe de tanto ser passado com aquela cera, dia após dia, ano após ano, vida após vida. O seu magnífico brilho contrastava com a sua traição, fugidio e escorregadio era a forma de ser valorizado, a calma e a perícia e a leveza com que se tinha de andar por cima dele. Eu ao contrário de muitos, preferia manter-me em cima dele horas, ali sentada de pernas cruzadas e puxadas quase até ao meu peito, para que de alguma forma possa encostar de quando em vez o meu rosto aos joelhos. Estava inquieta por dentro, tinha movimentos estranhos dentro do meu corpo, não era os intestinos, nem o estômago. Era eu, os meus lábios estavam quentes, húmidos e estupidamente vermelhos. Mais uma vez a sala iluminava-se durante alguns segundos, em vez de medo nesta segunda vez, fiquei estranha, enervada e cheia de vontades, de me deixar cair para o lado e friccionar uma perna contra a outra e deixa-me.
(…) Estranhamente, sinto-me.


Apeteceu-me


"Nem sempre o nosso lugar está ao nosso alcance". Charles de la Folie

quinta-feira, abril 12, 2007

Não me Lembro de Ser(vir) Mulher




(…) Que vergonha, sentia-me despida de nada em especial. Sentia-me só, sem nada, mas com alguém. – Não entendo o porquê da vergonha, mas ali estava só, sentada em mim mesma, onde me interrogava sobre coisa alguma. Sobressaía nos meus pensamentos, alguns pequenos paralelismos frutos da minha pecaminosa mente, que me traia nos mais ínfimos sentimentos.
Como mulher, não me conseguia definir, como pessoa tinha medo de mim, como ser humano sentia-me animal. Muitas vezes o sangue nas minhas veias fervia, queimava-me o corpo, percorria-me as entranhas, fazia-me rastejar perante aquela estúpida solidão momentânea. Pedia a Deus algo que me saciasse aquela vontade de nutrir os meus pecados. - Parava o olhar, deixava de gesticular, sentia o silêncio. Percorria aquela imagem em circunferências que subiam e se distanciavam, onde a visão cada vez mais alta, mostrava a envolvência onde me encontrava, os vários mistérios que se escondiam perto de mim… a imagem, a minha imagem rodopiava, como se de uma estátua trata-se, numa qualquer exposição.
Quebrava-se o silêncio, o pensamento voltava. Os olhos, os meus olhos estavam vidrados, embargados numa neblina quase simétrica, a realidade estava longe de ser percorrida. Sentia algo a subir-me pelas pernas, pelo corpo, em direcção a tudo e ao mesmo tempo a nada, sentia o corpo a abrir-se, eu abria-me, não sabia a quê, não sabia por ignorância, nem sabia por falta de paladar.

(…) Passei as mãos pelo cabelo. Longos cabelos que retirei da face, enfiei a ponta dos dedos, e deixei-os caminhar, fechei os olhos, senti uma réstia de lágrima misturada com sonhos a serem empurradas por excesso pelas pálpebras ao fecharem. Com as palmas das mãos encostadas ás fontes, fechei os dedos e suavemente fui puxando os cabelos, devagar deixei desliza-las (mãos), aconcheguei com as palmas os olhos, e deixei percorre-las apertando o nariz até passar com os dedos nos meus lábios húmidos.
Senti crescer o meu corpo, apetecia-me acaricia-lo.
(…) Estava desequilibrada, não pelo que me apetecia, nem pela vontade de o fazer. Estava porque, ao cruzar as pernas, deixei-me tombar, muito devagar, até tocar com o cotovelo no chão, ao fazer força para me recompor, voltar a minha postura normal, deixei-me cair até vincar o ombro, e suavemente deixar cair a cabeça sobre nada… foi ai que senti como estava só. Numa tentativa desesperada de me recompor, ainda deitada, olhei para as minhas mãos, senti-as como se fossem parte das minhas vontades. Uma ponta de sangue, sangue real que percorria um dos meus dedos, passei com a língua e senti-me a reciclar, a criar-me e com vontade de me recriar.



Apeteceu-me



"Não me lembro de ser, mas tenho sempre vontade de acreditar". Charles de la Folie

terça-feira, abril 03, 2007

Imagens Mortas

(…) Projectava a sua imagem naquela tela enrugada de tantas vezes ter suportado sonhos de tanta gente. Era uma imagem seca, escura e quase estática. Os movimentos, esses eram construídos artificialmente pela chama daquela vela que se ia esvaindo a cada segundo que passava.
Ontem pela primeira vez entendi o poder da insensibilidade das notícias, a forma como chegam, a sua crueldade, o desespero que trazem, a forma como transformam a vida de uma pessoa, como a controlam e como a desfazem.
Não era a primeira vez que vivia naquela amargura, que aqueles meus lábios secavam de raiva, e se ensanguentava de tanto os morder. Não era a primeira vez que aquela sensação me percorria a espinha que se curvava perante tanta angústia. Era mais um dia que me obrigava a sobreviver, como tantos outros que constituíam a minha insignificante vida. Só não era mais insignificante porque um dia sussurraram-me – que eu era a pessoa mais importante da sua vida. Dessa vida que um dia desapareceu sem rasto – hoje não dou muita importância a esse sussurro, mas por vezes dá-me animo, mesmo que seja falso, que me engane, mas serve para que os meus olhos voltem a brilhar, voltem a sonhar. Mesmo que seja por uma ínfima fracção de segundos.






Gostava de me sentir só, só mas não abandonada aos meus desencantos, só mas não perdida, nos meus enormes vazios.
Ontem quase me recusei a redescobrir-me por medo do que se passou, hoje que quase só quero lembrar-me do dia de ontem, que me esperará amanhã. As minhas mãos tremiam, o meu rosto era invadido por aquele suor, de esforço que não se faz, mas que obrigam os músculos a contraírem-se. Sentia-me fechada, fechada por dentro como se fosse eternamente virgem, como se nunca mais pudesse receber um homem, senti-lo, aquelas carícias estavam terminadas para sempre, temia isso, como temia nunca mais sentir coisa alguma, sentir a verdade dos momentos mesmo que cruéis, tinha medo de tudo e de coisa alguma.
Hoje queria olhar-me mais uma vez para saber se era real, não sabia, podia até nem existir, nem estar por aqui, nem por ali – estava tinha a certeza que estava, a minha desesperança diziam-me que estava, que tudo era real.
Lembrei-me, lembrei-me daquele dia em que sozinha, percorri aquele imenso campo verde em direcção ao infinito, estava descalça, quase nua, sentia o vento preencher-me o corpo, acaricia-lo e torna-lo vivo, lembro-me dos orgasmos que tinha quando me sentia envolvida em mim. Tenho medo que esses dias que teimam em não voltar, que esbarram em pensamentos nada dignos não voltem. Ao fim ao cabo quem ainda tem uma pequena esperança, quer dizer que está viva, mais ou menos viva.
Perdi-me, perdi-me em varias conversas quando entrei naquela sala com a vela na mão, e vi aquele velho ecrã. E ai pensei sinceramente que era uma pessoa com sorte, poderia ter uma vida enfadonha que não tivesse sequer tempo para imaginar histórias sem fim.

Apeteceu-me


"Por vezes alguem tem de se perder para ser novamente encontrado". Charles de la Folie