quinta-feira, maio 31, 2007

Monitor(izada)



(...) Ali estava no meu espaço, entre o escuro e as cores da minha imaginação. Gosto de residir naquele canto diante os fantasmas que não me atormentam! Cada dia que passa mais me afeiçoo-o a eles, espectros do dia em que me perdi, em comecei a pecar, sintio-me entre a literatura de cordel e os mais nobres clássicos escritos por profetas das palavras.


(...) Cresce-me o corpo, a alma e os prazeres, naquele pequeno espaço onde percorro com a ponta dos meus dedos o mundo, em poucos segundos. No pequeno monitor vejo muitas vezes o meu reflexo, é ai que me vejo, que revejo, o cabelo escuro pelos ombros, os olhos escuros rodeados por umas sobrancelhas muito escuras e fartas, umas pestanas grandes. O nariz que fala de mim, narinas abertas de quem precisa de muito oxigénio para alimentar as chamas que se vão apoderando do meu corpo.


(...) Gosto de observar a minha boca, mesmo que destorcida com as cores que costumam estar naquele ecrã, de sítios que procuro e temo nunca os poder encontrar, locais entre o empíreo e o érebo, por outras palavras entre o céu e o inferno, entre porra alguma. É uma boca pequenina de lábios carnudos, definidos e muito vermelhos. Gosto de os trincar, devagar como quem beija, gostava de os manter húmidos, como que colhe aragens de prazer, passar-lhes suavemente com a mão em direcção ao queixo e sentir...


(...) O monitor morre muitas vezes por ali, prescindo de me ver, a minha cara deixa de ser importante naquele quarto, escuro onde os fantasmas se afastavam agora com o odor que saia dos meus poros, qual cadela com cio. As palavras escritas começavam a distorcer-se, assim como torcia e esfregava as minhas nádegas na cadeira a procura de algum conforto. O barulho das letras a saltarem para o ecrã, enquanto os dedos escorregam pelo teclado dá lugar a um som lúgubre e monótono contrasta com a música colorida de satisfação de um corpo a enrijecer.



(...) Esfrego os pés, um no outro, sinto uma vontade enorme de me aprisionar, de me prender e de me perder entre a gula de me ter e o desejo de o ter. Adoro servir-me de mim, abusar sem ser magoada, ter-me sem me prender, destruir-me e reconstruir-me de prazer, em cada pensamento uma sensação nova. Gosto de pecar para me absolver com novos devaneios de loucuras pouco espirituais, mas sim desejos bastante carnais.
As sensações que os pés me dão, qual lambedela húmida em terrenos de degustação douta.



(...) O respirar tornava-se cada vez mais forte, mais ofegante. Os olhos fechavam-se, as pálpebras parecem ter pequenos tremores parecidos com estertor da morte. A verdade é que aqui nada acaba, tudo ganha vida, cores. Derrete-se a carne entre pensamentos que levam para longe, É ali que começa uma dança tribal, com um ritual entre os espíritos e o prazer, entre a intendência e o descontrolo irracional.




Apeteceu-me



"O que se pode ver com a alma, nem sempre se sente com a visão". Charles de la Folie

quinta-feira, maio 17, 2007

Acordar

(...) Sentia-me magnífica, harmoniosa comigo, sentia-me eu, sentia-me. - Hoje era um daqueles dias em que o seu reflexo no espelho não se mexia, perplexo com a sua beleza.
Sentia-me segura, gosto de descansar neste paraíso de coisa alguma, entre o nada e provavelmente o nada. Era claro... claro que era... como sempre mais um dia.



(...) Sentia que era mais um acordar quase irrepreensível, tinha aqueles pequenos gestos, sempre graciosos, que me acautelavam o corpo para mais um dia. Adorava estar ali deitada, com as mãos a pressionar a zona lombar, para empurrar a preguiça para fora do meu corpo, era como fazer uma pequena ponte entre o meu sedoso e sedento corpo e a cama, forrada com lençóis negros de seda. Gostava de passear o corpo por ali logo de manhã, de fazê-lo deslizar, senti-lo a roçar pela cama onde grande parte dos meus sonhos se manifestavam.





(...) Rompia comigo. Rompia-me. Quase nunca me abandono, e quando o faço, faço para me perder em mim e por mim... aos meus belos prazeres e tentações. Devolvo-me vezes sem conta para tentar ser cada vez mais perfeita no meu tocar. Gosto de me contorcer, de entender como a forma da dor é tão próxima, mas tão proxima do prazer. Como o Amor e os dissabores que caminham juntos, como os gritos que calam a Alma, podem ser tão diferentes e tão iguais aos Gritos que prevalecem na Dor.



(...) Sinto lágrimas (prazer), algumas vão caindo pelo meu corpo despido, que lentamente ganham velocidade e percorrem os meus seios até chegarem ao precipício rijo e eriçado onde ficam (lágrimas) ali no limbo. Até se desligarem e caírem com força... A força de uma sensibilidade que está à flor da pele. Sentindo aquelas lágrimas quase entrarem em mim.



(...) Mais uma manhã que me perco no meu acordar, entre sonhos que não se concretizam e pesadelos que não chegam... acredito ferozmente nas vontades de me ter e de me manusear. Quero e acredito em mim , quero cada vez mais ter-me para não me magoar. Gosto de sentir o sangue aquecer dentro de mim e violar-me de vontades que acabam sempre em conspirações cada vez mais húmidas.


(...) De joelhos sobre a cama, com as nádegas poisadas em cima dos calcanhares, entrelaço as mãos, puxo-as por cima da minha cabeça, sinto o meu corpo a esticar. Sinto-lhe o cheiro, o cheiro de um sonho, do prazer, das minhas vontades, daquilo que realmente sou, daquilo que realmente quero ser. Gosto de me ter, de me apreciar, de me experimentar, de me levar ao limite e descobrir como sou ilimitada





Apeteceu-me




"procura a morte e logo encontrarás uma bela e longa vida". Charles de la Folie

quinta-feira, maio 03, 2007

Liberta-me

(…) Adorava passear-me por ali, sentir os pés a enterrarem-se pela areia. Adorava aquelas manhãs meio solarengas com uma pequena brisa a arrefecer-me o corpo, que latejava com aquele cheiro a mar.
Os olhos vidram-se no horizonte, o sentido único onde o verde do oceano choca com o azul do céu. - Uma vez ouvi que a mistura dos dois alimentava a poesia, aleitava os pintores e perseguia os fracos de espírito. Era ali que dava o meu primeiro suspiro da manhã, onde erguia os braços em direcção ao céu e exorcizava a minha preguiça que se acumulava enquanto rebolava na cama em sintonia com os meus sonhos.














(…) O mar estava calmo, como calmamente caminhava em direcção a ele. Gostava de me sentar, na areia molhada e senti-lo a tocar-me ao de leve nos pés. Gostava de o ver subir por mim, lentamente, como os beijos. Levemente brutais, assustadoramente frios, que aquecem o corpo e descontrolam a alma. Gostava de pousar as mãos ao lado dos quadris… e brincava com a água, não a deixava tocar as minhas nádegas. Adorava quando ela (onda) bate nas pernas e salta pelo meu corpo, encharca-me os seios, e apodera-se de toda a zona abdominal, aquele frio transforma-se num pequeno vulcão que desperta um estranho, mas perfeito bailado num corpo já de si pantanoso.








(…) Gosto de brincar com o mar, rebolar-me nele, oferecer-me a ele como não o faço a ninguém. Gosto do sal que larga no corpo, de lambe-lo e sorve-lo nas partes onde a minha língua consegue chegar. Sinto-me perdida, no meio de tanta imensidão, molhada, provocada, sinto-me como gosto em pecado por mim e em mim. Sinto-me violada e oferecida, aos meus próprios prazeres, gosto de contornar o meu corpo com as mãos… sentir o eco da água a reflectir-se e a ajustar-se contra mim. São abraços intermináveis que afagam os meus prazeres e devaneios.


(…) As horas passam, sinto o meu corpo cada vez mais fechado sobre mim, a minha alma mais aberta, os meus poros escancarados, a minha vida parada em movimentos que atenuam a realidade. Aqui mando no meu corpo, no meu prazer, sou rebelde no meu amor-próprio. Mergulho de costas, abro bem as pernas para sentir a agua a entrar dentro de mim, estico os braços para sentir os seios a esticarem, o ventre a descomprimir. O sol cada vez mais se torna no pior dos afrodisíacos, impossível de parar, rasga o corpo em mil orgasmos…


Apeteceu-me




"Nem sempre a verdade está escondida, por vezes não existe"! Charles de la Folie

quinta-feira, abril 19, 2007

O canto



(…) Estava no canto, não num canto, mas no canto daquela enorme sala. Costas encostadas na parede, uma enorme parede, amarelada do fumo dos enormes tarolos que ardiam dias a fio naquela lareira com tantos anos, como vidas que por ali se aqueceram.

Podia ser um dia como outro qualquer, adorava sentar-me ali na escuridão de uma sala centenária, onde a musica se misturava com o crepitar do lume. Gostava daquele cheiro a carvalho queimado. Gostava de mim. Estava perdida na notícia que acabada de imaginar que um dia iria irromper por aquele espaço.
Custava-me respirar, cada lufada de ar que levava com mais força para dentro de mim, doía-me. Sentia os peitos a saírem-me do corpo, deslizam-me com força naquela camisa de flanela, uma camisa grossa, velha, tão velha como o seu cheiro, o cheiro do meu avô que eu tanto adorava.
(…) Estava presa em mim, restava-me a tormenta de estar só por ali. A dúvida insistia, nos meus mistérios, aquela noticia que me assolava os pensamentos, que não passava disso, de pensamentos, os quais eu não queria que algum dia se tornassem realidade.
Temia-me, temia a minha tristeza, o fracasso do meu tímido sorriso, queria-me muito.
Estava a olhar para as palmas das minhas mão, e ali estava a minha vida toda. O meu destino. Como se eu acreditasse nisso, nem nisso nem em profecias, acreditava em poucas coisas. Acreditava naquelas vozes que me faziam estremecer por dentro quando me sentia sozinha. Aquele medo, que não passava de vontade de me ter e de me sentir.
Apetecia-me cruzar os braços, cravar as unhas ombros e deixa-las deslizar suavemente, depois lentamente aconchegar-me, apertar com força a zona abdominal e faze-las subir até me sentir segura. Um estrondo lá fora, a noite faz-se dia durante alguns segundos. As sombras movimentam-se, alteram-se como o meu corpo. O medo apodera-se, os olhos enchem-se de sangue. Há estranhos bailados por ali, o meu corpo dança de pavor, treme de pânico.
Lembro-me de coisa alguma naquele momento, sei que estou, como estava encostada naquela parede, sei que me sinto dormente. O soalho onde me sento, parece estar a dar de si, como eu me quereria dar a mim. Rangia, parecia um gemido, talvez quem sabe de tanto ser passado com aquela cera, dia após dia, ano após ano, vida após vida. O seu magnífico brilho contrastava com a sua traição, fugidio e escorregadio era a forma de ser valorizado, a calma e a perícia e a leveza com que se tinha de andar por cima dele. Eu ao contrário de muitos, preferia manter-me em cima dele horas, ali sentada de pernas cruzadas e puxadas quase até ao meu peito, para que de alguma forma possa encostar de quando em vez o meu rosto aos joelhos. Estava inquieta por dentro, tinha movimentos estranhos dentro do meu corpo, não era os intestinos, nem o estômago. Era eu, os meus lábios estavam quentes, húmidos e estupidamente vermelhos. Mais uma vez a sala iluminava-se durante alguns segundos, em vez de medo nesta segunda vez, fiquei estranha, enervada e cheia de vontades, de me deixar cair para o lado e friccionar uma perna contra a outra e deixa-me.
(…) Estranhamente, sinto-me.


Apeteceu-me


"Nem sempre o nosso lugar está ao nosso alcance". Charles de la Folie

quinta-feira, abril 12, 2007

Não me Lembro de Ser(vir) Mulher




(…) Que vergonha, sentia-me despida de nada em especial. Sentia-me só, sem nada, mas com alguém. – Não entendo o porquê da vergonha, mas ali estava só, sentada em mim mesma, onde me interrogava sobre coisa alguma. Sobressaía nos meus pensamentos, alguns pequenos paralelismos frutos da minha pecaminosa mente, que me traia nos mais ínfimos sentimentos.
Como mulher, não me conseguia definir, como pessoa tinha medo de mim, como ser humano sentia-me animal. Muitas vezes o sangue nas minhas veias fervia, queimava-me o corpo, percorria-me as entranhas, fazia-me rastejar perante aquela estúpida solidão momentânea. Pedia a Deus algo que me saciasse aquela vontade de nutrir os meus pecados. - Parava o olhar, deixava de gesticular, sentia o silêncio. Percorria aquela imagem em circunferências que subiam e se distanciavam, onde a visão cada vez mais alta, mostrava a envolvência onde me encontrava, os vários mistérios que se escondiam perto de mim… a imagem, a minha imagem rodopiava, como se de uma estátua trata-se, numa qualquer exposição.
Quebrava-se o silêncio, o pensamento voltava. Os olhos, os meus olhos estavam vidrados, embargados numa neblina quase simétrica, a realidade estava longe de ser percorrida. Sentia algo a subir-me pelas pernas, pelo corpo, em direcção a tudo e ao mesmo tempo a nada, sentia o corpo a abrir-se, eu abria-me, não sabia a quê, não sabia por ignorância, nem sabia por falta de paladar.

(…) Passei as mãos pelo cabelo. Longos cabelos que retirei da face, enfiei a ponta dos dedos, e deixei-os caminhar, fechei os olhos, senti uma réstia de lágrima misturada com sonhos a serem empurradas por excesso pelas pálpebras ao fecharem. Com as palmas das mãos encostadas ás fontes, fechei os dedos e suavemente fui puxando os cabelos, devagar deixei desliza-las (mãos), aconcheguei com as palmas os olhos, e deixei percorre-las apertando o nariz até passar com os dedos nos meus lábios húmidos.
Senti crescer o meu corpo, apetecia-me acaricia-lo.
(…) Estava desequilibrada, não pelo que me apetecia, nem pela vontade de o fazer. Estava porque, ao cruzar as pernas, deixei-me tombar, muito devagar, até tocar com o cotovelo no chão, ao fazer força para me recompor, voltar a minha postura normal, deixei-me cair até vincar o ombro, e suavemente deixar cair a cabeça sobre nada… foi ai que senti como estava só. Numa tentativa desesperada de me recompor, ainda deitada, olhei para as minhas mãos, senti-as como se fossem parte das minhas vontades. Uma ponta de sangue, sangue real que percorria um dos meus dedos, passei com a língua e senti-me a reciclar, a criar-me e com vontade de me recriar.



Apeteceu-me



"Não me lembro de ser, mas tenho sempre vontade de acreditar". Charles de la Folie

terça-feira, abril 03, 2007

Imagens Mortas

(…) Projectava a sua imagem naquela tela enrugada de tantas vezes ter suportado sonhos de tanta gente. Era uma imagem seca, escura e quase estática. Os movimentos, esses eram construídos artificialmente pela chama daquela vela que se ia esvaindo a cada segundo que passava.
Ontem pela primeira vez entendi o poder da insensibilidade das notícias, a forma como chegam, a sua crueldade, o desespero que trazem, a forma como transformam a vida de uma pessoa, como a controlam e como a desfazem.
Não era a primeira vez que vivia naquela amargura, que aqueles meus lábios secavam de raiva, e se ensanguentava de tanto os morder. Não era a primeira vez que aquela sensação me percorria a espinha que se curvava perante tanta angústia. Era mais um dia que me obrigava a sobreviver, como tantos outros que constituíam a minha insignificante vida. Só não era mais insignificante porque um dia sussurraram-me – que eu era a pessoa mais importante da sua vida. Dessa vida que um dia desapareceu sem rasto – hoje não dou muita importância a esse sussurro, mas por vezes dá-me animo, mesmo que seja falso, que me engane, mas serve para que os meus olhos voltem a brilhar, voltem a sonhar. Mesmo que seja por uma ínfima fracção de segundos.






Gostava de me sentir só, só mas não abandonada aos meus desencantos, só mas não perdida, nos meus enormes vazios.
Ontem quase me recusei a redescobrir-me por medo do que se passou, hoje que quase só quero lembrar-me do dia de ontem, que me esperará amanhã. As minhas mãos tremiam, o meu rosto era invadido por aquele suor, de esforço que não se faz, mas que obrigam os músculos a contraírem-se. Sentia-me fechada, fechada por dentro como se fosse eternamente virgem, como se nunca mais pudesse receber um homem, senti-lo, aquelas carícias estavam terminadas para sempre, temia isso, como temia nunca mais sentir coisa alguma, sentir a verdade dos momentos mesmo que cruéis, tinha medo de tudo e de coisa alguma.
Hoje queria olhar-me mais uma vez para saber se era real, não sabia, podia até nem existir, nem estar por aqui, nem por ali – estava tinha a certeza que estava, a minha desesperança diziam-me que estava, que tudo era real.
Lembrei-me, lembrei-me daquele dia em que sozinha, percorri aquele imenso campo verde em direcção ao infinito, estava descalça, quase nua, sentia o vento preencher-me o corpo, acaricia-lo e torna-lo vivo, lembro-me dos orgasmos que tinha quando me sentia envolvida em mim. Tenho medo que esses dias que teimam em não voltar, que esbarram em pensamentos nada dignos não voltem. Ao fim ao cabo quem ainda tem uma pequena esperança, quer dizer que está viva, mais ou menos viva.
Perdi-me, perdi-me em varias conversas quando entrei naquela sala com a vela na mão, e vi aquele velho ecrã. E ai pensei sinceramente que era uma pessoa com sorte, poderia ter uma vida enfadonha que não tivesse sequer tempo para imaginar histórias sem fim.

Apeteceu-me


"Por vezes alguem tem de se perder para ser novamente encontrado". Charles de la Folie

terça-feira, março 20, 2007

A Porta.






(…) Há 40 anos que aquela porta não se abria. Era um momento de algum nervosismo. Naquele instante bastava esticar a mão, meter a chave na ranhura… e depois com o pulso, rodar aquela maçaneta de madrepérola para a direita… e empurra-la.
Lá dentro, ninguém sabe ao certo o que lá poderá estar, além dos cheiros que se acumularam ao longo de tantos anos, e do pó, e dos bichos, e das lembranças, e de sei lá mais o quê.



(…) Tão nova, tão bonita, tão… mantinha-se naquele quarto quieta em silêncio, com um olhar terno fixo numa qualquer esquina, de uma rua não muito movimentada, mesmo ali. Lá estava como todos os dias de cotovelos fixos no parapeito, mão a abraçar e apertar a face até ruborizar as maçãs do rosto. Os pés entrelaçados um no outro batiam ritmos ao som do silêncio. Os cheiros sóbrios a alfazema da sua roupa cruzavam-se com as cores garridas dos seus pensamentos.





(…) Ao mesmo tempo que olhava para aquela maçaneta de madrepérola, pensava em milhentas coisas. No fundo do seu bolso, procurava a chave que abria aquela porta. Com o sobrolho franzido como que faz alguma ginástica mental para conduzir os seu dedos entre lenços engelhados de tanto uso, papeis de rebuçados, algumas moedas de pouco valor e uma medalha que tinha achado a porta da mercearia quando foi comprar alguma bolachas a peso.


(…) O seu nome Liberdade, contrastava com a sua clausura naquele quarto. Aquele olhar era a porta para os seus males. Era ai que se libertava com os seus pensamentos, das vontades impostas, da sua condição feminina de quem estava prometida a ninguém. Realmente essa era a verdade nos seus pensamentos não cabia lá ninguém obrigado. Tudo o que coabitava com ela, vivia em harmonia com o seu próprio mundo que cá fora tinha o nome de utopia.


(…) O metal da chave roçou-lhe pelos dedos, puxou-a, atrás com a imensidão de coisas que se iam acumulando ao longo de dias, veio o próprio interior do bolso de uma sarja muito fininha. Tentou alinhar a chave na sua mão para poder abrir aquela porta encerrada nos tempos e que lá dentro teria no mínimo uma mão cheia de nada.
Nervoso, enterrou a chave na fechadura, como quem crava um espada pelo corpo e rompe a carne. o barulho em nada semelhante provocou um arrepio muito parecido com tremor de terra.




(…) Naquele dia, quando no único momento em que desviou o seu olhar da rua. Fixou durante algum tempo a porta do seu quarto que estava fechada, mas não trancada. Percebeu que as marcas da madeira afinal não eram mais que marcas de tempo, tempo passado na floresta ao sabor dos ventos, do sol da chuva, eram as suas marcas que tinham parado no momento em que foi ali posta (a porta).

(…) Com a mão direita rodou a chave para a direita, duas voltas depois, rodou a maçaneta de madrepérola, para a direita também mas com a mão esquerda.
Respirou fundo uma vez, respirou fundo uma segunda vez, e uma terceira.
Na altura em que encostou o joelho a porta para poder auxiliar a abrir, teve um calafrio e uma sensação de dejá vu. Respirou então fundo pela última vez.

Apeteceu-me




"A Vida é a pior das doenças, leva-nos sempre a Morte". Charles de la Folie