segunda-feira, julho 10, 2006

Mágoa

(…) O grito feria a Alma sensível que se prostrava por ali.
Era sensível, não de uma forma vincada, ou profundamente marcada, mas era.
Todos os dias, passava por aquela rua e sentia os cheiros que corriam porta a porta, os silêncios que trilhavam as janelas, o acordar daquelas emoções que se escondiam por entre quartos, salas ou mesmo por assoalhadas sem nome e sem função aparente.
Ao olhar para o céu, conseguia ver-se por entre aquele emaranhado de fios, o azul do longínquo infinito, entre uns e outros, nuvens, brancas como o algodão, brancas como nada e como tudo.
Gostava de sentir os meus sapatos a bater naquele paralípipedo, cinzento e já tão gasto de tanto por ali passarem ao longo dos anos. Aquele barulho seco e cavo, fazia-me pensar e repensar que a minha passagem pela vida tinha algum significado, porquê não sabia, mas fazia. Aquela hora, gostava de pensar, gostava de sentir e de me sentir.
Mas aquela rua além dos cheiros, dos silêncios, de esconder emoções tinha outros significados. Manifestava uma mão cheia de imagens, de saudades, de dias passados por ali a espera de outros dias, que chegavam sempre cheios de surpresas e de vivências, dias cheios de tudo e de nada, mas dias que ajudavam a crescer e a envelhecer uma alma ainda demasiado tenra e terna. Eram dias em que os pensamentos voavam verdes e sem maldade, apesar de todas as tormentas que fazíamos todos passar. Eram dias, que por muito cinzentos que fossem, faziam com que as cores do arco-íris … andassem sempre por ali, sempre presentes naqueles sorrisos que escondiam feridas diferentes da de hoje, eram feridas simples mesmo que os golpes fossem profundos, mesmo que a carne estivesse rasgada, eram de cura elementar, demasiado simples, o próprio ar as sarava.




Por vezes ao caminhar por ali fechava os olhos e lembrava-me dos gritos, dos sorrisos de outros tempos que davam outro colorido.
Hoje vejo com alguma amargura, que a rua envelheceu. Os corpos escondem-se por debaixo de trajes escuros, muito escuro como a alma que os enclausura. Aquelas vestes, aqueles lenços fazem lembrar um tributo a gente que partiu e nunca voltou… Voltaram… voltaram de um sítio onde ninguém acredita que existe, mas que prende e repreende. Esta gente precisa de uma revolta, da revolta de um povo que vive mal, que é torturado constantemente, por gente sem escrúpulos, que nem sequer sabe que aquela rua existe. Um dia acredito que esta gente vista roupa com cores, que grite a sua felicidade até a voz se perder num infinito de ideais… que há muito tempo os roubaram a troco de nada.

Apeteceu-me

"Nunca te libertes dos teus fantasmas, porque há sempre alguem para te oferecer os dela". Charles de la Folie

15 comentários:

Ana P. disse...

Gosto sempre do que escreves.
Beijos

Luís Filipe C.T.Coutinho disse...

A rua dos mil passos com sabor a encantos velhos de um tempo de ontem...


abraço

João Mãos de Tesoura disse...

Sublime, em especial a citação final!
Já agora, reabri um blogue que não é mais do que uma estória escrita por quem queira. Gostava que lá escrevesses um post se tiveres paciência.
www.oenigma.blogspot.com
Abraço

Anónimo disse...

um dia vai haver cor nas ruas outra vez.
mas as cores têm k vir de dentro...
se nao nem as conseguimos ver.


*

augustoM disse...

As cores do passado, como um arco iris, nunca se esquecem, o recordar aviva-as.
Mas se as cores não são esquecidas, o mesmo não se pode dizer das pessoas, que numa amálgama de cores, ficam reduzidas ao branco, em cuja transparência são disolvidas.
Um abraço. Augusto

Anónimo disse...

Cantemos à revolta, a nossa e a dos outros, a quem o tempo faltou

revoltemo-nos mesmo que seja a troco de nada, mesmo que seja mais um engano

Beijo

Cherry Blossom Girl disse...

O sol voltará a brilhar para nós. Temos que acreditar.

Beijinho
***

Cris disse...

Esperemos que as vozes se percam num infinito de reais, em vez de ideais. Foi um prazer ler-te caro vizinho :)
Um beijo

Carla disse...

Os fantasmas fazem parte de um passado... presente... no futuro... e sempre...
Beijos e boa semana

João Mãos de Tesoura disse...

Carlos, se tiveres paciência vê se escreves algo no Enigma, www.oenigma.blogspot.com, uma estória escrita a várias mãos. A tua ajuda será sempre preciosa.
Abraço

Menina Marota disse...

... como gostos destes passos que nos levam a recordações de alma..
... os meus passos não me têm trazido aqui, (por falta de tempo, tb) mas como é bom ler-te!
Vou colocar a leitura em dia. Volto já...

Bj ;)

Carla disse...

Beijos e bom fim de semana

Avó do Miau disse...

Muito bonito Carlos!
Um abraço da Daniela

Nomyia disse...

Gostei. Os fantasmas são mesmo isso: vestígio de um passado que teima em não desaparecer. *****

joshua disse...

Essa sensação de que, no envelhecimento de uma rua, na perda dos seus odores, no esmaecimento das suas cores está a conivência de velhas vilezas nacionais, de velhas opressões e esquecimentos de quem não zela por um povo na verdade oprimido e explorado.

Belo poema!