terça-feira, janeiro 15, 2008

Linhas…

(…) Há uma linha onde se prende a minha vida. Todos os dias, quando me lembro que sou um sobrevivente, salta-me à memória, o pequeno monitor de hospital, de fundo negro, com uma linha contínua verde solto –, onde surgem os batimentos cardíacos. Ouço os apitos, num som estridente, que penetram pelo corpo e provocam pequenos calafrios. Quando se cala, é de vez, uma vida que se foi, uma alma que resta, muitas historias que se contam.

(…) Estava frio, o céu azul, a água calma e havia um silêncio gritante. Ao fundo uma linha, uma enorme linha, que dividia o finito do infinito. O azul mortal, com o azul celeste. Os olhos cerravam-se deixando uma pequena abertura para que o reflexo do sol na água não me ferisse a vista. Duas ou três gaivotas pareciam paradas no horizonte, mantinham-se numa linha que se formava mesmo ali, perdidas para sempre.



(…) Sentado à janela, via como ninguém o galgar de terra em direcção a mais um dia. Sentia o deslizar do comboio naquela linha de sentido único. Sempre os mesmos lugares, as mesmas paisagens, os mesmos cheiros. A senhora da passagem de nível parecia estar ali plantada há séculos. – Com uma bandeira vermelha, de cor já muito comida de tantos anos naquela posição. Naquela linha, perdera-se há muito –, a pouca terra.



(…) Naquela manhã, ouviu-se mais uma vez o grito ríspido do comandante do pelotão. Estava, frio e enevoado, a humidade caía insistentemente. O corpo cravava-se naquela posição durante tempo demais, os músculos ficavam dormentes, a cabeça deixava de ser racional. As ordens rompiam em ecos muito profundos dentro de um estado de espírito que não existia. Tudo em nome de uma disciplina rígida, para uma guerra que não havia. Em nome de uma linha e de uma linhagem imaginária.



(…) A luta parecia desigual. Durante minutos, largos minutos, ali estava ele, de mão firme. Uma mão no punho da cana, outra no carreto. A cana vergava, entre puxões de parte a parte. O anzol cravara-se na boca do peixe, que lutava desesperadamente pela sobrevivência. Do outro lado com mestria, um estranho bailado na esperança do seu opositor se render -, entre avanços e recuos. Um impasse – a linha parte-se.




Apeteceu-me

"É muito ténue a linha que separa a nossa imaginação da realidade". Charles de la Folie

quinta-feira, janeiro 03, 2008

Não me lembro...


(…) Cruzava-me entre o nada e o tudo. Era dia, não um dia do mês, mas mais um dia numa vida que se queria, entre a esperança e a ansiedade –, de não a ter de desdenhar. Um sorriso, mais um passo no vazio que se preenche com um futuro que rapidamente nos presenteia com o passado. Entrelaçava os dedos, suspirava fundo, tentava esquecer os pensamentos rotineiros das verdades indesmentíveis que não fazem qualquer sentido – só por isso falsas.

(…) De braços abertos à espera de um corpo para abraçar, contento-me com a aragem que me envolve. Descubro bem no fim do meu olhar aquilo a que chamam o horizonte, perfilo-me na sua direcção, mas permaneço imóvel. Só o olhar, numa desenfreada luta com o convencional, o puxa (horizonte) em direcção à minha alma. Espero pelo embate, fecho os olhos e sinto-o a chegar –, mais uma vez dou por mim de braços abertos.


(…) O rio corre barrento, lá dentro milhares de muitos quês e porquês. Está na hora de deixar de pensar. Afinal tudo existe, realmente tudo depende de tudo. O barco que só faz sentido na água, o óbvio que só é óbvio por isso mesmo e a disciplina, só o é pela indisciplina. Cruzo-me em mim e por mim. Desfaço as probabilidades de me duplicar, resisto à tentação de me banalizar e permaneço – por vezes eu.



(…) Pertenço às palavras que não sei escrever, mas sinto-as. Quero-as por direito de as poder repartir. Ouço a música que chega do fundo, bem do fundo das minhas fantasias. Um dia vou rescrever uma vida inteira de pequenos nadas, há procura de um enorme tudo. Depois tocarei, com a ponta dos dedos nas melodias que se tornam opacas e em tons garridos. Depois do alto da nuvem que um dia conquistei, liberto-me e deixo-me cair.


(…) Lembro-me e relembro-me, do dia em que as ondas cresceram. Ficaram tão altas como o convencimento de alguns simples humanos. Volto atrás, lembro-me e relembro-me, do dia em que as ondas cresceram –, repito-me. Estavam altas, mas só me lembro da grandeza da natureza que nos percorre e nos deixa percorrer. Um dia sonhei ser o vento, nunca mais deixei de sorrir, no dia em que fui mar, cresci meio metro na minha humildade, outro fui chuva, no outro fogo – e hoje sou eu.



Apeteceu-me

"O óbvio nem sempre é o mais sensato". Charles de la Folie