terça-feira, novembro 13, 2007

O Jogo

(…) Gostava daquele ritual, de se vestir confortavelmente com as cores de sempre. Domingo soalheiro, céu azul sem nuvens, temperatura amena, sem ponta de vento. Gostava de sentir o som crescente dos adeptos, o fervilhar a volta do estádio. Olhava à sua volta, via-se e revia-se. Passo largo para não perder 1 segundo fosse do que fosse. No pescoço o cachecol de sempre, oferecido há muitos anos pelo seu Pai. Grande parte das vezes fazia-o por ele.


(…) Adorava o cheiro da relva molhada. Aquela entrada, entre o nada e o tudo… entre o cinzento do betão e o explodir do palco, verde de contornos brancos. Tocava-me na alma e no corpo aquelas sensações. As vozes aclaravam-se. Nunca tivera grande timbre para cantar, mas a minha voz, aguda por vezes esganiçada, parecia sair de mim mais alta que todas. Os cânticos percorriam-me a pele, arrepiavam-me como as mãos de alguém que já não se lembra de mim.



(…) Os minutos de espera são horas, a bola não rola, não rodopia, não se movimenta. Dentro de mim crescem-me vontades. O aroma a impacienta é descontrolado, os movimentos de cor, são desfasados. Sinto-me cada vez mais mulher dentro daquele palco de homens. Olho à minha volta, poucas são as que mordiscam os lábios. Que sentem o calor intenso dentro delas. Estão ali obrigadas e sem vontade. Pensam noutras coisas.


(…) Soa um apito, meia dúzia de segundos depois o meu corpo liberta-se. Grito, salto, protesto, rio e choro. Os cânticos ecoam, fazem eco dentro de mim,. Percorrem-me como dedos sensíveis que me conhecem e repartem. Fico desajeitada, amparo com a palma das mãos, de peitos esticados a minha zona lombar. Relaxo, fico com vontade… sento-me e perco posição. Jogada perigosa –, levanto-me de um salto, e levo as mãos à face.

(…) Reprimo, mais uma vez o árbitro. A posição falta-me, sinto por perto os vários bafos masculinos. Quais predadores no seu habitat natural. Cordiais, nem sempre. Grande parte das vezes os seus olhares desferem estucadas de morte das quais me desvio subtilmente. O meu sorriso é pelo prazer que tenho neste jogo. Sou seduzida por ele. Gosto das reacções que são produzidas em mim durante os 90 e tal minutos.

(…) É emocionante, tentar perceber como a jogada se constrói. Imprevisível a forma como vai correr. Do outro lado o desespero, são tentativas e mais tentativas. Deixo de pensar, fico vazia. Solto-me e deixo só os meus olhos funcionarem. A bola está cada vez mais perto do objectivo. O meu corpo torna-se numa enorme mola, comprimida a espera que a soltem. O pontapé é mortal. Solto um grito lancinante. Naquele momento todos os meus medos, problemas, até a minha vida desaparecem. Abraço-me, pulo, dou palmadas nas costas deste e daquele. Sinto-me latejar de prazer. Mais uma vez apetece-me gritar voluptuosamente.



Apeteceu-me

"Há a vontade de percorrer o teu sorriso, nem que seja só com o olhar". Charles de la Folie

6 comentários:

sofialisboa disse...

o texto é suberbo, o trocadilho também, só é pena a fotografia da criança holandesa ser assim, vai ser holligan de certeza, são tambem as tristezas deste jogo...sofialisboa

augustoM disse...

A sedução erótica do futebol.
Um abraço. Augusto

Carla disse...

O corpo vibra de entusiasmo...
bom fim de semana
bjx

Jasmim disse...

Não comento o desporto, mas gosto da frase ""Há a vontade de percorrer o teu sorriso, nem que seja só com o olhar". Charles de la Folie"
deixo-te esta:
"Vejo os pombos no asfalto / eles sabem voar alto / mas insistem em catar as migalhas do chão."

Jasmim disse...

Carlos
Desculpa
Que insensível fui...
bom domingo

anjo disse...

belo blog. sensivel e explosivo como uma bela taça de pessêgos com cobertura de nata! Aqui do além mar delicia-me ler bons textos