quinta-feira, março 31, 2005

(Fogo) Cruzado IV

(fogo)Cruzado

(...) pois é mesmo aquele “gajo” que deve ter desfalecido já algum tempo por ali e só de pensar que ele saiu de dentro de mim, ai que horror um aborto, áh as coisas que eu pensava, aliás as coisas que eu adorava pensar. Pensar mantém-nos vivo e de que maneira naquele momento bem precisava de estar vivo, mas não era o único que precisava de mim vivo, não vai faltar muito o Vasco vai irromper por ai aos gritos, ai vai, vai ele é que ainda não deve saber, quando a dona Henriqueta lhe der aquela carta.
O que eu precisava agora mesmo era, um bocado de alma, de espirito, para poder vislumbrar o que se vai passar neste sábado que já arranjaram maneira de, pois ia dizer que estragaram, mas acho que não , que não estragaram mesmo acho que vai ser uma daqueles dias 5 estrelas, mas tenho mesmo que ir a casa de banho. Deixa cá ver o que terei ai para ler... mas a Palmira também ia ter uma bela surpresa se não a teve já, pois será que ela já teve? Não acredito que a mãe fosse capaz de abrir a carta e contar a filha o que lá está escrito, mas nunca se sabe, mas se isso acontecesse já havia por ai gritos, e quem sabe uma ambulância a porta do prédio.
Bom, vou a casa de banho, sentar-me no trono, aquele frio fazia-me estremecer o corpo, o frio do... qual do... da peida a assentar na sanita, provocava-me aqueles arrepios na barriga, quando uma pessoa cruza os braços e dobra-se sobre o abdómen, a espinha parece amolecer para depois fazer de mola e catapultar os nossos olhos para fora da orbita, e depois, e depois olhamos para o espelho que fica logo ali para ver o ar de estúpidos que temos ali sentados no trono, é mesmo ar de estúpidos e de quem não sabe o que fazer, é quase como quando achamos alguém muito giro, e estamos durante dias a preparar um discurso todo pomposo e depois chegamos ao momento da verdade e bloqueamos e ela diz-nos tudo aquilo que nos deixa com aquele ar de casa de banho, um ar desconcertante, talvez dai aquela expressão “foi uma ar que lhe deu” é um ar de casa de banho. Ficas com aquela cara de quem comeu e odiou, mas enfim tinha mesmo de ali ir, e é inútil pensar que conseguimos outro ar, ou sobreviver sem termos de lá ir, temos mesmo de lá ir que ninguém duvide disso. Mas o ar também não melhora, quer dizer o ar de Ar, oxigénio, hidrogénio ou coisa que nos valha, esse melhora quando vamos a mata ou temos que ir a mata, ao campo, mas o nosso ar esse não melhora nada, quer dizer acho eu não é que por ali haja espelhos, mas estou a ver e a lembrar-me, primeiro a busca incessante de uma belo esconderijo para a obra de arte, depois ver e sentir se há alguém por perto, depois descobrir como se pode fazer a coisa sem acontecer nenhuma desgraça, puxa-se as calças para baixo, os boxers desvia-se cuidadosamente os pés, ajeita-se bem o cenário dá-se mais uma olhada em volta, sempre com alguma ponta das calças na mão caso apareça alguém para as puxar-mos rápido, depois dessa ultima olhada, os sentidos tem de ficar alerta, atentos, baixa-se, a posição é a de cócoras, o equilíbrio tem de ser perfeito, os pé tem de ficar desviados do centro de despejo, ali do raio de acção do alvo, tem de ser num sitio de ervas rasteiras para evitar cócegas desnecessárias, depois é só, é só, revermos estes passos todos e vermos o nosso ar, é mesmo um ar que nos deu, mas se revermos bem vemos que o nosso ar vai ser bem pior quando virmos que falta qualquer coisa, claro que falta, agora imagine-se o nosso ar, a pensar:- e agora onde vou limpar?
Claro, claro, alguém conhece uma ar mais idiota que este?
Claro que conhece, o ar de andar com as calças e os boxers puxados para baixo, a prenderem os pés e andar por ali, a procura de folhas decentes que não se desfaçam na mão. Pior mesmo só quando aparecemos depois ao pé de alguém com aquele ar meio encolhido, meio envergonhado, meio enojado, que só falta termos um letreiro, na testa a dizer fui “cagar” à mata e não tinha papel.

Apeteceu-me

Há 20 anos quando desci à capital deparei com esta "Mulher", com um "M" muito grande
fez-me voar muitas noites, quem sabe se não lhe devo alguma das minhas "coisas" boas.
Uma mulher sem preconceitos e com uma vontade muito grande de viver, pelo menos num mundo a parte.





20 anos depois, precisamente no dia do Pai fui encontra-la a vaguear por ai, onde se cruzou novamente comigo, encontrei a mesma "Mulher" com a mesma vontade de sonhar, viver e ensinar, uma mulher sem preconceitos e que não se queixa.
Chama-se Teresa Ricout, os amigos chama-lhe, Tété "manda" no Chapitô há muitos anos,foi a primeira Mulher Palhaço e é a unica que conheço.

"Adoro viver cansado de sorrir"
Charles de la folie

quarta-feira, março 30, 2005

Cherchez le Garçon

Cherchez le garçon

(...) Tinha uns olhos penetrantes, negros, escuros muito escuros e ainda os sombreava para, os realçar mais, o seu cabelo escorreito e da cor da noite, deambulava pelo seu pescoço, era uma “Miúda” sensual, directa e... pouco mais se sabia dela só que era enigmática, um bocado indecifrável, mas como todas as mulheres... implacável, segura de si, doentiamente segura de si, mas havia nela algo que a perturbava, não se sabia a razão ao certo mas por vezes os seus olhos pestanejavam, havia algo dentro dela que não batia, não correspondia, a sua fé inabalável estava a ser traída por algo, alguma coisa mais complicada, mas que aos olhos do mais comum dos mortais, não tinha qualquer solução.
(...) Triste, mas com uma fé inabalável, seguro como o aço, percorria todos os caminhos possíveis da sua mente, na sua missão de vida ou da sua maneira de estar na vida. Quem o conhecia via nele alguém sempre com uma solução, um desenlace, tinha sempre algo de inesperado na sua manga, fazia magia á sua maneira.
Na sua busca de soluções eliminava as suas duvidas mesmo que fossem, dolorosas, mesmo que fossem um massacre, era como um comboio em andamento, já nada o fazia voltar atrás, a sua espera estava preste a terminar.
(...) Afinal Luxuria era o seu nome, orgulho o seu sofrimento, era um problema de grave solução era um choque de vontades, aquilo que a sua mente dizia, não tinha nada a ver com a sua vontade, mas a sua vontade também colidia com a sua mente e assim sucessivamente, até se formar uma espiral que obrigava a paragens progressivas, mas sem motivação aparente, mas a sua graciosidade não se esvanecia, parecia imperturbável, mas magoava e a solução não parecia perto.
(...) Ele, protegeu-a sempre, nunca lhe quis mostrar a realidade, não era mentira, mas a realidade podia ser muito mais dura, que alguma vez se podia imaginar por isso meteu mãos à obra, mas ninguém o entendeu, ninguém percebeu porque ele fez isso, mas era obvio, por pura protecção, pura vontade da busca de soluções, para que ninguém soubesse o que se passava, nada que fosse incompreensível, mas a vontade de complicar muitas vezes desfazia outras vontades outros saberes e desejos.
(...) Ao fim e ao cabo ela com aquele olhar, com aquelas certezas apesar do seu ar frágil, terno e meigo, continuava a procurar o seu rapaz, talvez fosse isso que procurava, aquela “Miúda” de ar frágil e personalidade forte.
(...) No meio daquele turbilhão de emoções , banalidades, frustrações, vários padrões de energias subsistiam por ali, eram duas auto estradas de velocidades estonteantes, que se cruzavam vezes sem conta e nunca se encontravam. Até que um dia um grave despiste fez o inevitável um encontro com o imprevisível, afugentou as mortes e aproximou os desejos, naquele dia os corpos encontraram-se em fusões múltiplas, mais uma vez o amor vencia as barreiras de coisa alguma, as fronteiras da insensatez e da ilusão, afinal aquelas duas personagens nunca existiram eram apenas... isso mesmo. Naquela altura o rapaz já era um homem.


Apeteceu-me

"A procura é como o desejo, chega sempre em forma de sonho" Charles de la folie

terça-feira, março 29, 2005

Sobre(aviso)vivência II

Sobre(aviso)vivência


(...) Estava um dia solarengo, com uma claridade fora de normal, mas estava um frio incomum, muitos graus negativos. A luta ali pela sobrevivência era barbara.
Estávamos nos confins do mundo, onde os peixes, os pobres peixes lutam contra a corrente, o salmão que luta rio acima para desovar e morrer, uma morte descansada depois de deixar a sua marca,é o seu ciclo de vida, onde depois tudo volta a acontecer, descem ao oceano, para voltar rio acima, desovar e morrer, mas nem todos sobrevivem aquela caminhada constante.
Aquele não era um dia especial, nem tinha nada que fosse digno de realce, mas era um dia... mais um dia, todos os dias eram mais um dia, mais 24 horas, mais uma série de minutos, de segundos, mas nada com que fizesse que a vida parasse, que o ciclo de vida deixasse de funcionar assim como ele era.
Não sei se era uma pradaria, se seria uma estepe gelada ou se seriam ambas a mesma coisa, eram e era um local, onde se podiam ver as alcateias de Lobos lá ao fundo, sempre juntos em perfeita união com... e naquele espaço, mais perto do rio podiam-se ver dois ou três ursos de grande porte com um ar simpático, podia-se imaginar o cheiro nauseabundo que deviam emanar, um cheiro a peixe podre amadurecido com o cheiro normal que um animal deita, se juntarmos a esta formula o seu tamanho, o seu notável e distinto tamanho, imagina-se o cheiro, o bafo que a “ Besta” emana. Mas não seria por certo aquele cheiro que ia deitar por terra a esperança daquele espaço, nem o cheiro, nem o frio, nem a luminosidade, de 24 horas sobre 24 naquela altura do equinócio, também ninguém sabia, se aquela terra iria se prostrar perante algo ou alguém, talvez fosse esse o mal, ninguém saber, ninguém se importar, nem saber, nem querer ou quererem saber, a indiferença, a indiferença da humanidade de se importar com qualquer coisa, fazia-me lembrar os cilindros que acalcam a terra e endireitam as estradas por onde passam “pisam” e “repisam” tudo.
Mas naquele momento pouco importava, até porque o ocaso, o crepúsculo, por ali durava pouco, mais que uns minutos, uns infindáveis minutos e maravilhosos minutos, uma contradição imensa, como aquela vida que por ali perfilava, era uma contradição imensa, a natureza é contraditória, mas isso faz parte do ciclo da vida, ao contrário das contradições humanas, o homem não devia contradizer-se ou por outra, a duvida devia fazer parte constante do homem, é na duvida que se chega a certeza, ao ritmo de vida, ás palavras que se ordenam em forma de poema, a vida é isso, a natureza não é mais que um enorme poema cheio de contradições.
Naquela estepe, ou pradaria, onde os lobos não tinham noite para uivar, onde os ursos não tinham arvores para trepar, onde os peixes subiam o rio para morrer, a vida passava num suspiro, enquanto os murmúrios do vento frio, do vento que enregelava qualquer humano pela forma gélida de agir e de pensar, pareciam dizer aqueles murmúrios que ali o tempo não queria parar, mas também não conseguia avançar, estava atravessado, entalado, não emperrado, a engrenagem movia-se ao ritmo normal, mas o tempo esse parecia não fazer mossa, mais uma contradição, mais uma daquelas contradições, que ninguém se importa.
Mas naquela pradaria, naquela estepe, tudo se movia com uma graciosidade, a antiga luta pela sobrevivência, entre seres mais fracos, onde nem sempre o topo da cadeia alimentar acaba por prevalecer, onde os predadores também se abatem, era bonito ver as lebres de pelo quase branco, onde se confundiam com os milhares dentes-de-leão a espreitar sobranceiramente e atentamente como quem dança a espera da luta final. Também os lobos, que em quatro passos paravam para observar tudo a sua volta, mais quatro e mais quatro, infinitamente mais quatro, assim como os ursos, como os salmões, como os esquilos, os castores que faziam enormes represas de fazer inveja a qualquer contradição dos humanos.
A vida ali era levada ao estremo, ao estremo do dia a dia, a milhares, milhões de anos de dias que sobrepunham a dias, estranho mesmo, porque eram sucessivos quatro passos e depois observavam tudo a sua volta, a vida modificava-se, a paisagem crescia, mudava, moldava-se e aqueles quatro passos... mantinham-se.


Apeteceu-me

"Sinto o peito rasgado de tão perto que estive do fundo" Charles de La Folie

sábado, março 26, 2005

Esquina (PONTE)

Esquina (Ponte)



(...) Era o método, talvez, talvez fosse o medo afinal que o levasse a fazer aquele tipo de coisas, até porque não eram coisas banais do dia a dia, eram mais que isso, eram afazeres, afazeres normalissímos que o mais comum dos mortais faz, ora agora, ora mais logo, mas ali parecia metódico, não havia desvios das suas tarefas diárias o que tornava um ser enfadonho, sem vontade própria, sem ponta de auto-estima. Num daqueles dias, mais um que passava de uma série de dias infindáveis, revoltou-se com ele próprio, chutou contra qualquer coisa que estava pelo chão escorregou, caiu, bateu com a cabeça na esquina de qualquer coisa. Nada melhor que uma esquina para se parar, encostar e ver os vários ângulos do que por ali se passa, a visão periférica torna-se mais aconchegante, mais certa, mais verdadeira, mais qualquer coisa, ou seja menos rectilínea.




São as esquinas da vida que nos despertam, que em vez de nos afunilarem os sentimentos, dão-nos alternativas, basta encostar-nos e ver as soluções que ali se tornam de múltipla escolha. Aquela esquina deu-lhe vontade de dormir, desmaiou e adormeceu, um sono profundo. Estava deitado no mármore frio, estupidamente frio, de um chão limpo, estupidamente limpo, acabado mesmo de limpar. O seu corpo inerte, estava de lado enroscado como quem está a dormir, parecia de propósito, mas não. Tinha mesmo caído, estava mesmo magoado, tinha mesmo sangue, tinha, mas estava deitado com uma tranquilidade impressionante, as mãos estavam unidas puxadas até ao cimo da cabeça que despenteada assentava sobre elas, que faziam de almofada, os lábios estavam com um vermelho intenso de sexo, de quem está perto de um orgasmo, os olhos fechados, tranquilamente fechados, as suas pálpebras não estavam tensas, sentia-se actividade cerebral, porque notavam-se pequenos movimentos por dentro daquelas membranas finas e tão especiais, o corpo estava curvado, aconchega-se a si próprio. Aquela queda, aquela prostração, parecia mais um aconchego, que um qualquer desastre doméstico que vítima milhares de pessoas por ano.
Parecia ali abrir-se uma janela nos seus pensamentos, que corria a velocidade alucinante dentro do seu Cérbero, espirais de luz, fluxos de pensamentos, histórias que corriam estonteantemente por ali, os seus lábios vermelhos de sexo, esboçavam pequenos sorrisos, a sua face contraia-se levemente, a testa enrugava, e aconchegava-se como se os seus sonhos o estivessem a levar para sítios que só os predestinados tem direito.
Aquela janela levava-nos a imagens que corriam desenfreadamente, um desfilar de emoções que começavam desde que se conhece, desde a sua existência, eram imagens de todas as cores, formas e feitios, eram imagens de vida, da sua vida dos seus mais recônditos pensamentos, dos seus pensamentos mais clandestinos e mais obstinados, de uma beleza rara.
Uma imagem parou, focou e desfocou varias vezes, ficou côncava, depois girou 180 graus para um lado 180 para outro, parecia que se ia dobrar ao meiou até a imagem, centrar-se com nada, com porra nenhuma, com coisa alguma, focou-se, de lá saíram uns grandes olhos, os olhos de felino rasgados esverdeados e penetrantes, era uma entrada para uma viagem, uma inversão do tempo, do espaço e da realidade, o paradoxo da realidade e da oportunidade de se saber qualquer coisa, era despropositada aquela sequência de viagens, quase absurdas. As quedas eram constantes, os cadafalsos, emitiam estranhos prazeres, admiráveis sensações, que naquela altura ditavam imagens pouco concretas, a realidade era outra, aquela entrada aqueles olhos rasgados, de olhar penetrante aquela entrada, era um túnel de entrada única, em que a sua entrada dava lugar a uma estranha viagem em direcção ás emoções de alguém perdido numa esquina.

Apeteceu-me

BOA PÁSCOA A TODOS

quinta-feira, março 24, 2005

Sobre(tudo)vivência

Sobrevivência

(...) Era um dia difícil, um dia com uma densidade enorme de humidade, de árdua respiração, lá dentro o calor era abrasador parecia brotar, nascer, aparecer, por debaixo daquelas placas de zinco que faziam de telhado. De casa pouco ou nada tinha, a não ser umas paredes finas, feitas de pedaços de madeira que apareciam por aqui e por ali. Portas não tinha, muito menos janelas era um luxo demasiado grande.
Lá fora naquele imenso jardim de Deus, naquela terra que parecia ter mão divina, onde o calor, aquela humidade quente que entrava pelas narinas e queimava a traqueia, era como que se bebesse de um só trago uma daquelas mistelas feitas a base de aguardente de cana, tipo grogue, só que mais forte, aquilo a que os índios chamaram de água de fogo.
O cenário era paradisíaco, o mar batia levemente na areia, milhares de coqueiros pareciam acenar para o oceano calmo e azul, as nuvens estavam altas, a aragem quente quase que não se fazia sentir, ali estavam aquelas pobres casas no limiar do que alguém pode ter para sobreviver.
Mas ali o tempo corria de uma outra maneira, de uma outra forma, a um outro ritmo, ali, a sobrevivência tinha um outro significado, não queria dizer chegar vivo a um outro dia, não, ali sobrevivência, tinha a ver com dignidade, a dignidade de se estar vivo, de ser feliz, de que a natureza nunca lhes falte nem as suas dadivas. Os pensamentos corriam e escorriam poesia, formas de viver só possível onde a inveja, a ambição, a cobiça, a ganância, não estejam presentes no dia a dia, onde essas palavras se atropelem por si mesmo e desapareçam pelo infinito da ilusão.
Ali, onde agua desce escarpas magnificas e que corre na esperança de voltar ao processo inicial de nascer e transformar-se.
Naquele dia difícil, dia de difícil respiração, em que o horizonte continuava fora do alcance daquela gentes, onde o sonho comandava a história, uma história feita de pequenos nadas do dia a dia, onde os velhos passavam aos mais novos os ensinamentos, os antigos ensinamentos que passavam de geração em geração, de gente em gente, onde os mais pequenos corriam a praia de uma ponta a ponta, a explorar antigos esconderijos de danças mágicas, pequenos segredos que chegavam pelo mar e correspondiam a tentações enfadonhas.
Era ali que os dias corriam ao sabor da vontade e do prazer, fazer amor por ali, era um acto continuo de sobrevivência, bastava andar por ali para se fazer amor, ali naquele lugar, o acto de fazer amor não tinha a ver com o convencional, nem com o gerar crianças, tinha a ver com aqueles dias, com a maneira como se viviam os dias, bastava ver o sorriso de cada um, para entender o que é fazer amor ali, naquelas paragens, era um acto de sabedoria, um acto continuo de saber viver cada dia, cada vontade, cada prazer, era um grito continuo de liberdade de poder andar de peito aberto pela asas da nossa existência e voar com a insistência de quem sabe o que quer.
Havia ali, notava-se, naquele dia de difícil respiração em que as regras não eram ditadas mas sim saboreadas, porque as regras não existiam mas sim o respeito por tudo, pela própria existência, só se “roubava” a natureza o essencial para os prazeres da sobrevivência, nem um peixe, nem uma fruta nem uma raiz, nada era desperdiçado, o desperdício não era julgado, porque ali ninguém julgava ninguém, os julgamentos ficariam para outras “gentes” em que eles acreditavam, seres superiores que os tinham criado, gerado e ensinado a serem o que eram, a ter aqueles princípios dignos de um sobrevivente, era essencial sobreviver-se daquela maneira, como era fantástico descobrir aquela pequena ilha no meio de nada, onde poucos ou mesmo ninguém saberia da sua existência.
Naquele dia de difícil respiração onde o calor abrasador, fazia o suor parecer uma cascasta, em corpos bronzeados, onde o suor se confundia com óleos naturais. Naquele dia, quando ouviu a sua mãe a pedir-lhe gentil e suavemente para arrumar os bonecos e a sua ilha que estava na hora de jantar, descobriu o significado da palavra UTOPIA.


Apeteceu-me

quarta-feira, março 23, 2005

Apneia (Alma)

Apneia



(...) Respirou fundo, fechou os olhos, contou até 10 com os olhos revirados para cima, respirou novamente fundo, concentrou-se ajeitou o pescoço fazendo varias reviravoltas para um lado e outro, respirou novamente fundo e atirou-se.
(...) lentamente mão após mão ia descendo. A água estava fria mas límpida, aquele encontro, quase olhos nos olhos com o Mar, era amar o Mar levado... quase levado ao extremo.
É uma introspecção, o relaxamento levado ao outro lado do inenarrável, do indizível, uma aproximação aos limites, aos reais limites daquilo que se julga ilimitável.
Aquele corpo estava envolto numa auréola de paz, conseguia pensar em coisas, que nunca julgou existirem pelo menos nos seus pensamentos, uma serenidade de espirito, uma harmonia, um sossego, era uma união entre o silêncio e a paz de, e do espirito.
A sua descida continuava, e a sua hipnótica visão da vida mantinha-se em crescendo, a respiração mantinha-se suspensa, cada segundo que passava ele via tudo mais claro, e nem sequer tinha a ver com o que realmente estava à sua frente, aquele cenário...




(...) era um de uma claridade fantástica os raios de sol rasgavam pela a água a dentro, pareciam setas a cravarem-se na carne, mas sem aquele barulho diabolicamente desconcertante, ali reinava o silencio e a calma. Uma série de cardumes andavam por ali, peixes de todas as cores, de todos os feitios, achatados, redondos, piramidais, rectangulares, quadrados, hexagonais, até parecia estar lá um em espiral.
E as cores? Eram tantas, lindas, havia uns que pareciam ter néons, lá em baixo no meio daquela areia fina, plantas que pareciam dançar, à volta corais e mais corais, e mais cores, muito mais cores, os peixes fazem voos rasantes, deambulam por ali , por acolá, imprevisivelmente andam por ali e por acolá fazem linhas definidas, com ângulos, os peixes são geometricamente perfeitos na sua maneira de andar ou por outra de nadar.
(...) pensava na sua vida enquanto ia descendo, pensava como aquilo que estava a fazer podia ser um suicídio, mas não era, mas pensava que era uma forma de morrer linda, numa inebriante forma de relaxar, de descontrair, de aliviar a ou as tensões.
Mas pensava na sua vida, nos amores da sua vida, nas suas paixões, enquanto continuava a sua descida, lenta mas segura, pensava em tudo o que tinha feito, como bela pode ser a vida,como bela é a vida, como é fácil e linear o que se pode pensar ali, naquele sitio, naquele bonito e deslizante forma de (a)mar.
(...) o ar começava a faltar, o oxigénio começava a não chegar ao cérebro, começava a alucinar, sabia que ainda tinha de fazer o percurso inverso, lentamente, mas sabia que tinha ainda algum tempo antes de o fazer, começava a ver tudo desfocado, parecia um caleidoscópio, com imagens lindas coloridas a concentrarem-se para um ponto no meio de algo, afunilava as imagens, girava-as, via pessoas à minha volta, muitas caras de gente que nunca tinha visto ou que julgava nunca ter visto, parecia um buraco negro, luzes e mais luzes a irem em direcção a ele, enquanto a sua descida continuava, aqueles segundos que faltavam entre a descida e a subida, aquela espécie de limbo que fica por ali, ouve uma altura em que já estava, já estava consumada a descida, agora havia que começar lentamente a subida, uma subida calma, muito calma, era altura de ir buscar as suas reservas de ar, que o treino ao longo dos anos o ensinou a guardar, os seus olhos começavam a ficar raiados de sangue, a sua pele começava a enrugar-se o seu corpo a ficar ligeiramente azulado, mas não podia perder o controlo, ali o controlo era muito importante, era preciso saber controlar tudo, os níveis de ansiedade, os níveis de resistência, de sofrimento, era preciso não entrar em pânico, afugentar aquele pavor súbito.
(...) a vida é linear, assim como os pensamentos, que por vezes tem avanços e recuos, mas naquele dia, aquele mergulho era mais que suspender temporariamente a respiração, era mais suspender provisoriamente qualquer coisa que naquele momento não tinha qualquer importância nem sentido.


Apeteceu-me

terça-feira, março 22, 2005

Paparuca

Paparuca


(...) Era livre sempre foi, chamavam-lhe “Estaline”, por pura ignorância, era livre, adorava ver pessoas livres, adorava sentir-se liberto de tudo.
(...) Chamavam-lhe “Estaline”, por dizer tudo o que lhe ia na alma numa altura em que só o facto de pensar servia logo para tentar acorrentar a dignidade de quem pensa, naquela altura em tempos idos o despotismo imperava, mas os homens, os homens mantinham-se livres e fiéis a si próprios, não corriam contra o seu espirito, apesar de parecer atordoados e adormecidos.
Mas aquele homem nunca se calou, mas tentaram cala-lo, naquele tempo dizem, a sua voz erguia-se em discursos intermináveis, por becos e travessas, muitas vezes ajudado por néctares que abundavam daquelas terras do Ribatejo.
Era um homem baixo, cabelo branco, escorrido e sempre penteado para o lado, pernas arqueadas da idade, bigode branco, não tão pequeno como o que celebrizou outro Ditador de outras paragens, mas era no género, maçãs do rosto bem definidas e roborizadas, não muito, levemente roborizadas, assim como o seu nariz. Os olhos, a parte mais dificil do seu corpo de explicar, era um Arco Íris de emoções, sempre brilhantes, muito brilhantes, como os olhos de um sonhador, eram verde, cinzentos azuis, mas as emoções, aquele Arco Íris de emoções, o que aqueles olhos diziam e transmitiam, ficam guardados para sempre, serenos, tranquilos e Hábeis a esquivarem-se, escondiam amarguras de outros tempos de outros espíritos.
Toda a sua força residia nas suas mãos e também no seu caracter, mas nas habilidade das suas mãos.
Nada lhe resistia, tinham o poder de nada lhe resistir, eram mágicas, atraiam as dificuldades para depois as superar, era um a habilidade incomum, fora do comum, não havia mãos como aquelas.
Tinha um Dom, Um dom que nasceu com ele, um presente uma dadiva, aqueles dotes naturais simplesmente revelaram-se, os Dons aparecem ninguém sabe como, mas tinha-o e sabia-o usar como ninguém.
Quantas pessoas são predestinadas e nunca os descobrem? Quantas pessoa, nunca imaginaram, nem descobriram que têm um Dom? ( não falo daquelas pessoas que tem o dom de irritar e de nos revelarem pouca seriedade)
Aquele Dom revelou-se, não havia fechadura nem cofre que lhe ficasse indiferente que não se curvasse perante tanta habilidade e respeito por aquilo que fazia, o prazer de o fazer até aos fins da sua vida.
Conta-se, que uma família falida, de terras de abundância agrícola, de gentes de outras de outras esferas e aparências, um dia sem eira nem beira chamaram-no, tinham um cofre, um cofre de pé que devia de pesar mais de 500 quilos, feito em sândalo que deitava para fora aquela fragrância tão peculiar e apetecível.
Era um cofre que só por si era uma obra de arte precisava de ser aberto para ser vendido, os donos sabiam que não tinha nada dentro até porque o cofre já estava na família a 4 gerações e nunca ninguém soube o seu segredo, era altura de o despacharem para poderem usufruir de mais uns dias de aparências, quem sabe se não se alimentavam mesmo de aparências.
Hábil com as mãos e de pensamento rápido, porquê perder tempo ali com aquela, família de aparências, comprou o cofre para poder conversar com ele para o poder saborear, para saber os seu segredos bem guardados, ele sabia que era uma obra de arte, bastava tocar-lhe, sentir na ponta dos dedos, passa-las suavemente como se adormece uma mulher, passar lentamente pelas arestas, sentir os seus recortes, redescobrir a entalha daquela madeira que se reduzia aquele brilho e a dignidade de voltar a ser compreendido, ele acreditava que aqueles objectos tinham vida, que se juntavam a ele.
Foi colocado religiosamente na sua oficina, as cores que abundavam eram o vermelho ferro, aquela cor de ferrugem, o chão sujo de muitos anos a levar com limalha, saltava a vista uma pequena fornalha de manivela, que ao ser accionado fazia com que milhares de fagulhas ateassem o fogo ao carvão, para assim poderem moldar o ferro, tornea-lo. O cheiro era uma mistura de ferro com pó, de sabão azul e branco entrelaçado com serradura, havia também um enorme berbequim, que ao perfurar o ferro , vertia um liquido branco parecido com leite.
Mas naquele dia com os óculos, na ponta do nariz , olhos prostrados, naquele enorme cofre, mais uma vez acariciou-o, os botões que continham o segredo eram de abecedário, 24 letras cada um dos 4 botões, giravam no sentido do relógio, não ouve preparação nenhuma, nem nenhum ritual especifico, começou a girar os botões, como quem sintoniza um radio, não demorou muito tempo, 4, 5 minutos por botão, deu a chave calmamente, meteu a mão na alavanca, uma alavanca dourada, grande e pesada, a sua mão robusta, mas sensível, agarrou-a firmemente, puxou-a para baixo, ouviram-se as 6 trancas de aço a destrancarem de uma só vez, puxou a porta, aquela porta pesada. Lá dentro estava uma das maiores fortunas que há memória naquelas redondezas e paragens.
Foi entregue, não a quem de direito, mas a quem de moral teria direito, até hoje sabe-se, que nem uma gratificação nem um obrigado, as aparências devem ter levado a gratidão exigível.
Com ele foi o Dom, foi o segredo de abrir seja o for, ele acreditava que esse Dom era meu, mas faltava-me uma coisa, talento e acima de tudo paciência, o truque estava na paciência, na espera constante do momento exacto, de ouvir o que mais ninguém ouve.
(...)Lembro-me de ouvir uma ultima vez, era domingo o meu avô acabava de acordar de um longo sono, um coma profundo que durou 4 ou 5 semanas, perguntou-me:
Qual é o resultado do Sporting ( foi a primeira e ultima pergunta)
Nesse dia o Sporting ganhou, mas perdeu (Sporting) um amigo.


Apeteceu-me

Entrei em Apneia.