quarta-feira, março 23, 2005

Apneia (Alma)

Apneia



(...) Respirou fundo, fechou os olhos, contou até 10 com os olhos revirados para cima, respirou novamente fundo, concentrou-se ajeitou o pescoço fazendo varias reviravoltas para um lado e outro, respirou novamente fundo e atirou-se.
(...) lentamente mão após mão ia descendo. A água estava fria mas límpida, aquele encontro, quase olhos nos olhos com o Mar, era amar o Mar levado... quase levado ao extremo.
É uma introspecção, o relaxamento levado ao outro lado do inenarrável, do indizível, uma aproximação aos limites, aos reais limites daquilo que se julga ilimitável.
Aquele corpo estava envolto numa auréola de paz, conseguia pensar em coisas, que nunca julgou existirem pelo menos nos seus pensamentos, uma serenidade de espirito, uma harmonia, um sossego, era uma união entre o silêncio e a paz de, e do espirito.
A sua descida continuava, e a sua hipnótica visão da vida mantinha-se em crescendo, a respiração mantinha-se suspensa, cada segundo que passava ele via tudo mais claro, e nem sequer tinha a ver com o que realmente estava à sua frente, aquele cenário...




(...) era um de uma claridade fantástica os raios de sol rasgavam pela a água a dentro, pareciam setas a cravarem-se na carne, mas sem aquele barulho diabolicamente desconcertante, ali reinava o silencio e a calma. Uma série de cardumes andavam por ali, peixes de todas as cores, de todos os feitios, achatados, redondos, piramidais, rectangulares, quadrados, hexagonais, até parecia estar lá um em espiral.
E as cores? Eram tantas, lindas, havia uns que pareciam ter néons, lá em baixo no meio daquela areia fina, plantas que pareciam dançar, à volta corais e mais corais, e mais cores, muito mais cores, os peixes fazem voos rasantes, deambulam por ali , por acolá, imprevisivelmente andam por ali e por acolá fazem linhas definidas, com ângulos, os peixes são geometricamente perfeitos na sua maneira de andar ou por outra de nadar.
(...) pensava na sua vida enquanto ia descendo, pensava como aquilo que estava a fazer podia ser um suicídio, mas não era, mas pensava que era uma forma de morrer linda, numa inebriante forma de relaxar, de descontrair, de aliviar a ou as tensões.
Mas pensava na sua vida, nos amores da sua vida, nas suas paixões, enquanto continuava a sua descida, lenta mas segura, pensava em tudo o que tinha feito, como bela pode ser a vida,como bela é a vida, como é fácil e linear o que se pode pensar ali, naquele sitio, naquele bonito e deslizante forma de (a)mar.
(...) o ar começava a faltar, o oxigénio começava a não chegar ao cérebro, começava a alucinar, sabia que ainda tinha de fazer o percurso inverso, lentamente, mas sabia que tinha ainda algum tempo antes de o fazer, começava a ver tudo desfocado, parecia um caleidoscópio, com imagens lindas coloridas a concentrarem-se para um ponto no meio de algo, afunilava as imagens, girava-as, via pessoas à minha volta, muitas caras de gente que nunca tinha visto ou que julgava nunca ter visto, parecia um buraco negro, luzes e mais luzes a irem em direcção a ele, enquanto a sua descida continuava, aqueles segundos que faltavam entre a descida e a subida, aquela espécie de limbo que fica por ali, ouve uma altura em que já estava, já estava consumada a descida, agora havia que começar lentamente a subida, uma subida calma, muito calma, era altura de ir buscar as suas reservas de ar, que o treino ao longo dos anos o ensinou a guardar, os seus olhos começavam a ficar raiados de sangue, a sua pele começava a enrugar-se o seu corpo a ficar ligeiramente azulado, mas não podia perder o controlo, ali o controlo era muito importante, era preciso saber controlar tudo, os níveis de ansiedade, os níveis de resistência, de sofrimento, era preciso não entrar em pânico, afugentar aquele pavor súbito.
(...) a vida é linear, assim como os pensamentos, que por vezes tem avanços e recuos, mas naquele dia, aquele mergulho era mais que suspender temporariamente a respiração, era mais suspender provisoriamente qualquer coisa que naquele momento não tinha qualquer importância nem sentido.


Apeteceu-me