segunda-feira, março 14, 2005

ELA (sobrevive-se)

(...) Estava farta, fartíssima, há 20 anos que a sua rotina era aquilo, não mudava um milímetro (as rotinas são isso mesmo).
Levantava-se como se tivesse acabado de correr uma maratona, cansada, cansadíssima, sempre com aquele olhar triste, pele enrugada, de tanta indignação, prostração e conformismo, era um olhar vago, vago de ideias, de amor, de carinho, mas também vago por preencher, desocupado.
A vida por vezes é madastra, pensava ela muitas vezes, mas a sua auto estima era uma lástima.
Odiava, odiava muito aquele cheiro que todos os dias sentia, que saia do seu companheiro, todos os dias ter de abrir as pernas, sim abrir as pernas, era o que ela fazia, depois tornava-se doloroso, nem um carinho, nem uma ternura, nem um mimo, nem um beijo atirava toda a virilidade para cima dela, de uma violência aquele ímpeto ofensivo, sentia-se retraída, todo o teu corpo se tornava morto, o cheiro a suor, a álcool davam-lhe náuseas, sentia aqueles investidas dentro dela e ia adormecendo, o seu corpo a sua mente a usa vontade, gemia de dor não de prazer, esperava ansiosamente pelo final que durava uma eternidade. Enquanto aquele ritual trágico durava, o seu pensamento vagueava, por outras paragens, temia pensar noutros homens, temia pensar em gente, preferia sentir e ouvir o mar, fixar-se numa paisagem, num destino, num animal, mas nunca em pessoas, nada que a deixa-se triste, e voava, voava para muito longe, tantas vezes voava, que o seu companheiro, sai de cima e ela ficava ali até adormecer e acordar no outro dia estoirada, ressacada e ressecada, mas aquele tornava-se no seu melhor momento do dia, no seu refugio, no seu segredo, as conversas há muito que desapareceram.
Levantava-se como todos os dias preparava o pequeno almoço nunca o seu, preparava-o como o fazia há 5 anos, sempre da mesma maneira sempre com a mesma disposição na mesa, tinha de ser colocado metodicamente, se não já sabia que as primeiras e ultimas palavras que iria ouvir naquele dia seriam, um chorrilho de asneiras.
Enquanto ajeita a cama, aquele cantinho onde se anicha durante a noite para as suas viagens, ouve a porta da rua bater já sabe, que vai ficar sozinha nas próximas 12 horas, talvez só lhe dizendo um obrigado, 12 horas em que a vida tropeça em mil e uma duvidas, sentimentos que se embrulham, palavras que saem para os espelhos, vacilava muitas vezes, muitas mesmo perante ela própria, aquele amor que deveria ter, demorava a surgir, depois limpava a casa de banho, aquela era mesmo a sua rotina, limpava os cabelos, os pelos da barba, o mijo que ficava na tampa da sanita, era sem duvida um dia ou um começo de dia atribulado, sempre a fazer a mesma coisa, sempre com os seus receios, com as suas indecisões.
A mesma hora todos os dias, espreitava pela janela, tomava banho a pressa, mas um banho retemperado e retemperador, vestia-se arranjava-se, a sua cabeça parecia transformar-se radicalmente, aquela mulher cheia de duvidas, enfezada, enjeitada, com a auto estima em baixo, parecia outra arranjava o cabelo, pintava os lábios de um vermelho carregado, passava os lábios por cima um do outro, tinha uns lábios bem definidos, sombreava os olhos, os olhos escuros argutos, sagazes saia de casa discretamente como era seu hábito.
Aquela mulher que durante algumas horas do dia, parecia irremediavelmente perdida para a vida estava transformada, uma transformação quase hedionda, tal era a sua mudança, fez, 2 quarteirões a pé, num passo firme, parou ao pé de uma porta ampla, olhou para um lado e para o outro do passeio, respirou fundo entrou, dirigiu-se a uma porta fez um corredor enorme com gente de um lado e de outro, cabeça erguida ar seguro, meteu a mão na maçaneta da porta do gabinete do presidente da administração entrou, tirou o casaco e sentou-se a sua secretária, viu os papéis, e entrou o seu companheiro de sempre, que lhe pergunta.
- A Senhora deseja café?
- Não Obrigado(responde).

Apeteceu-me

7 comentários:

Anónimo disse...

Eu quero um café..largo se faz favor ;)
Existem vidas assim..sofridas, difíceis..as pessoas conformam-se com a sorte e vão sobrevivendo, como dizes..até uma dia...Charles o companheiro de que falas no fim..é o "companheiro"?...fica bem
beijos

D disse...

Infelizmente é essa a realidade de muitas vidas, mulheres que já nem vivem para ser felizes,mas sim viver por viver...
Fantástica a maneira como nos fazes "saltar"para dentro do texto e fazer com que tudo seja mais sentido. beijinhos carlos boa semana

Cris disse...

A busca incessante de qualquer coisa na vida é, talvez, o seu melhor tempero e - assim o sinto - o trampolim para o sonho!

Foi contudo o q faltou a esta mulher q, infelizmente, ainda será o retrato vivo de tantas outras que desistiram, pura e simplesmente, de procurar e correr atrás dos seus sonhos...

beijinho

isa xana disse...

primeiro: gosto mesmo muito da tua escrita, vai-se desenrolado e nós vamos ficando pregados ao texto. as tuas descriçoes sao muito boas.

segundo: tantas vidas ha que aparentam ser um mar de rosas e depois é algo completamente diferente. ela pinta os labios, pinta os olhos, arranja-se e sai de casa escondendo assim o que se passa com ela. tantas pessoas fazem o mesmo, que escondem a sua vida dos outros por vergonha do que se passa com elas.

terceiro: boa semana:)

quarto: beijinhos;)

isa xana disse...

tinha que dizer isto... achei engraçado... recebi um comentário teu, uns 2 segundos depois de te enviar o meu comentario!

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Anónimo disse...

GOSTO ESPECIALMENTE DOS COMENTÁRIOS PROFUNDOS. POR ISSO, EU COMENTO OS COMENTÁRIOS. E VOU ALERTAR AS EDITORAS PARA OS TALENTOS PERDIDOS NESTES BLOGUES.
QUANTO À HISTÓRIA... UMAS TÊM SEXO SEM QUERER, OUTRAS TÊM O QUE QUEREM E OUTRAS... QUEM SERÃO?... QUEREM E NÃO TÊM.

Anónimo disse...

OLA.QUEM VIVE DE SOLIDÃO NAO SOBREVIVE SÓ VIVE RESPIRA PAIRA:VAI SENDO SEMPRE ALGO, QUE VAI RESPIRANDO SEM VONTADE MAS LÁ VAI