terça-feira, maio 10, 2005

Mulher Invisível

Mulher invisível



(...)Era só mais um dia. Estava ali como todos os dias desde à 6 anos encostada a uma parede, numa qualquer esquina, que só por acaso era sempre a mesma.
Era uma mulher franzina, de olhar directo, rosto com marcas do tempo, com marcas do dia a dia, marcas de alguma frustração por exemplo de nunca ter visto mar.
Tinha um cabelo bonito, arranjado e enrolado, era negro natural, encaracolado por prazer, despenteado pelo vento, mas nunca esgardunhado, por isso sempre com aspecto delicioso. O seu olhar, directo mas discreto, atento, mas sem preconceitos, estudava quem passava e quem todos os dias a ignorava. Muitas vezes sorria com ela própria, dizendo que era a mulher invisível, invisível mas indivisível. O seu rosto apesar de agastado, da marcas sem perdão de um tempo que não para de uma vida mal curada, era um rosto simpático, enigmático, com simplicidade, era um rosto simples, talvez por isso se tornava bonito. Mas não era mais uma face, não era mais um semblante, porque era diferente, e a diferença não pode ser vetada à indiferença, por isso não podia ser invisível.
O seu corpo, era pequenino, franzino, delgado, delicado, esguio e nem por isso deixava de ser belo e apreciável, cada pedaço do seu corpo, estava incorporado no espaço a que lhe estava reservado, nada era enorme, mas tudo era proporcional, à beleza que um corpo deve ter.
Unhas das mãos pintadas uma cor purpura, quase a roçar a morte, aquela cor, que os corpos ganham quando perdem o calor e se soltam sabe-se lá para onde, costumam-lhe chamar a alma, mas não era mais que a cor, das suas unhas, e nada tinha a ver com a morte, simplesmente, porque a cor se tinha diluído por ai. Tinha vestido um camiseiro, cor de rosa, cintado, com umas golas enormes a fazer lembrar, modas de outros tempos, as golas compensavam o facto do camiseiro não ter mangas, ser cavado, estava abotoado até ao penúltimo botão, notava-se o seu regaço, queimado do sol, que realçava uma sardas ou uns sinais, que se não fosse assim nunca se notariam, conseguia-se ver o bordado do seu soutien preto, notava-se discretamente.
A sua saia, era uma pequena e discreta saia, não uma mini, mas podia ser uma média, feita de napa a imitar cabedal, um creme discreto a lembrar camurça, sobre ela um cinto largo, de uma cor estranha e cheio de miçangas de muitas cores uma fivela enorme, de cor de bronze, que apertava com dois (sei lá o nome) bicos.
Ali estava ela encostada, a espera, a espera que nada acontecesse, mas ao mesmo tempo a fazer o que mais gostava, observar as pessoas que por ali passavam, e nem se quer a olhavam.
Mas ela, ela olhava e via o que as pessoas continham, o que lhes ia na alma, ou por outra o que não lhes ia naquela alma..
Havia por exemplo uma senhora, que todos os dias passava por ali com dois sacos de plástico na mão, de um lado legumes, do outro o pão. Uma senhora de pernas arqueadas a rondar os cinquenta e muitos anos, pasava o dia a praguejar, olhava para mim, praguejava, olhava para o transito, praguejava, enfim olhava para a sua vida praguejava. Era casada, podia ver-se a sua aliança e mais outra que... queria dizer que estava com o mesmo homem a pelo menos 25 anos, na sua cara via-se que era uma luta e não um prazer, porque nunca a vi com ele, era obvio que ele ou era reformado ou desempregado, porque levava-lhe sempre o jornal, e ninguém quer ler o jornal depois de um dia de trabalho. E todo o santo dia lá ia ela sozinha, a praguejar com 25 anos de casamento e ninguém para lhe aliviar o esforço. Presumia que tivesse de ir naquele andamento, para ter o almoço a tempo e horas, para não levantar ondas.
A vida das pessoas, é assim, uma vida ocupada de desocupações, ou desocupada cheia de ocupações. Outra pessoa que gostava de observar era das poucas pessoas que me respeitava, estava ali a uns bons 30 metros de onde me encontrava, era o cauteleiro, conseguia falar com toda a gente, tinha conversa para toda a gente e toda a gente tinha conversa, para lhe dizer, aquele homem, tinha com ele guardado a vida de quase toda a gente que por ali passava, e a verdade, é que quase vivia de caridade deste e daquele. Quem sabia tanta coisa, devia de ser tratado de outra forma, porque seria que uma pessoa que tinha dentro dele a vida de tanta gente, era quase um indigente.
A vida continuava como todos os dias.. alguém ao fim de algum tempo parou para falar comigo:
- Desculpe quanto é? É preciso pagar o quarto, ou pode ser no carro?

Mais uma vez os olhos lacrimejaram e lá foi à vida.

Apeteceu-me


"O dia é a nossa imagem da vida, mas nem a chuva nos esmorece."
Charles de la Folie

13 comentários:

Vênus disse...

Quanta sensibilidade e beleza em tuas plavras...Adoreiiiiiiii!
BJS

Catarina Santiago Costa disse...

Gostei muito da musicalidade da narrativa que a tornava quase num poema.
Adorei a tristeza, porque por vezes a esta também é bonita.
Beijos

Anónimo disse...

Até que nem me importava nada de ter o dito Ferrari. Aqui no "Palácio de gelo" ainda não vendem. hihihi

Gostei muito desta tua dissertação.
Abraço

Fragmentos Betty Martins disse...

Olá

Agradeço a tua visita e vim conhecer o teu "canto"

Li algumas coisas e parei na "Mulher Invisível" retratas muito bem, com alguma sensibilidade e um sorriso de poesia. E isto pode acontecer em qualquer rua da cidade.

Gostei bastante Voltarei :-)

Um beijo

Daniel Aladiah disse...

Um dia no meio da vida de tantas vidas...
Um abraço
Daniel

BlueShell disse...

São realidades...às quais não podemos ser indiferentes....mas a verdade é que somos...tantas vezes!
Gostei da narrativa e do pormenor. Gostei mesmo!

Jinhos muitos, BShell

Anónimo disse...

Uma rua onde tantas vezes passamos e nem reparamos nessas mulheres tão (in)visíveis... Beijo grande.

Micas disse...

Gostei mt deste texto, ainda que triste mas ao mesmo tempo de reflexão. Bjs

Micas disse...

Se eu fosse a ti inscrevia-me neste concurso.
http://leiturascom.net
Vai espreitar

Vênus disse...

Olá Carlos
Aqui começando o dia.
Tem uma pergunta pra vc lá no Contos...
BJS

isa xana disse...

também eu gosto de observar outras vidas... tento imaginar o que pensam, tento visualizar o seu caminho...

gostei muito do texto e ia dizer-te para participares num concurso de micro-contos mas parece que já te deram o endereço... vai, participa;)

beijito

Anónimo disse...

carlitos, como consegues desdobrar-te dessa maneira? malabarista, acrobata?

Anónimo disse...

Não te sei explicar ao certo, mas gosto da tua escrita, não é ne de longe poética ou demasiado sensível, é franca, aberta, é "aquilo" e só "aquilo" que o mundo e a vida são. Fantástico, Carlos!

Vampiria
(http://satanlandia.blogs.sapo.pt)